O Exame de Ordem e a crise de qualidade do ensino superior

O Exame de Ordem e a crise de qualidade do ensino superior (Diário da Manhã, 06/02/09)

No último dia 29 de janeiro, foi divulgado o resultado da primeira fase do Exame de Ordem, exame obrigatório para que o bacharel em Direito possa fazer sua inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, assim, exercer a profissão de advogado.
O resultado mostrou que mais de 81% dos bacharéis em Direito foram reprovados no referido exame, ou seja, não alcançaram a pontuação mínima de 50 pontos, o que equivale à metade da prova. O exame da OAB, é verdade, ficou bem mais difícil quando o Centro de Seleção e Promoção de Eventos (Cespe), órgão ligado à Universidade de Brasília (UnB), assumiu a organização do referido exame. Podemos dividir a história da inscrição na OAB em três fases: a primeira, quando o exame não era obrigatório para quem fazia estágio; a segunda, quando passou a ser obrigatório para todos, mas a prova era feita pela própria OAB; e agora, onde a prova é bem mais difícil e sua elaboração é feita pelo Cespe.
No caso de Goiás, além de rumores de corrupção comprovados posteriormente, o Exame de Ordem sempre foi muito criticado.Um dos motivos disso era a baixa qualidade das provas, muito mal elaboradas, e, por mais absurdo que possa parecer, a disciplina mais importante do Direito, que é o Direito Constitucional, não era contemplada.
O fato mais positivo desencadeado pela descoberta da venda de gabaritos da prova da OAB em Goiás foi que o Cespe assumiu a elaboração da prova, o que deixou muitos bacharéis de cabelo em pé, porque agora teriam que enfrentar um exame bem mais rigoroso, imprevisível e também deixou desesperados os delinquentes que tinham comprado a prova naquele exame e agora teriam que passar por nova avaliação. Mas nem só desespero foi aquele período: os marginais que haviam comprado às provas em exames anteriores estavam aliviados, visto ser impossível saber quem havia comprado. Mesmo não sendo crime a fraude em concurso público, é moralmente reprovável, e esperamos que os responsáveis sejam excluídos dos quadros da OAB, pois envergonharam a advocacia goiana, sendo ela motivo de chacota em todo o País.
Infelizmente, muitos acusam o Exame de Ordem de ser uma reserva de mercado. Nada mais falso, uma vez que o referido exame não tem número limitado de vagas e também não há nenhuma concorrência – o examinado concorre apenas consigo mesmo, ou seja, quem tirar as notas mínimas estará aprovado.
O que ocorre é que o curso de Direito foi banalizado no Brasil, não só ele, mas quase todos os cursos. O responsável maior por essa política foi o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, auxiliado fortemente pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoj, Democratas (DEM), que tinham como objetivo para a educação a expansão desenfreada das faculdades particulares, independente da qualidade, além, é claro, da privatização das universidades federais abandonadas pela falta de investimento. Objetivo este do governo do PSDB/DEM que felizmente não se concretizou. Aliás, o Exame Nacional de Cursos, o chamado provão, foi criado com esse objetivo, mas como as universidades federais deram um show nas provas, o governo neoliberal ficou sem argumentos, além de ter ficado sem apoio popular para a efetivação de tais medidas.
Os resultados do exame da OAB nos mostram claramente que há um predomínio positivo das universidades públicas em relação às universidades particulares no referido exame, e mesmo no âmbito das universidades particulares, as universidades comunitárias – como as universidades católicas, que investem em pesquisa, além de reinvestirem o dinheiro das mensalidades na própria instituição – se saem melhor no reportado exame. Enquanto isto, em muitas outras faculdades particulares, os lucros em vez de serem reinvestidos na instituição, vão encher o bolso de algum capitalista, que enxerga os alunos como meros consumidores e a instituição como um meio para enriquecer.
Mas por que os alunos vindos de faculdades particulares se saem pior no Exame de Ordem? Será que existe alguma resposta plausível para tal assertiva? As respostas são muitas. Pode-se afirmar que o sistema de seleção é falho; que os alunos entram despreparados. Mas o vestibular não é literalmente sinônimo de boa seleção. Veja-se o caso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), que não tem uma concorrência forte como a da Universidade Federal de Goiás (UFG), ou da Universidade de Brasília (UnB), mas que nem de longe se compara ao vestibular da Universidade de São Paulo (USP). Porém, em 2005, em um dos exames da OAB de São Paulo, a referida universidade ficou em primeiro lugar no Estado de São Paulo, superando até a USP, alcançando um índice de aprovação de mais de 80%.
A questão é a estrutura que sustenta o curso. Quando diz-se da estrutura, está em questão a qualidade dos seus professores, sua biblioteca e o investimento em pesquisa. Direito é um curso que pode funcionar até ao ar livre – grandes prédios não significam absolutamente nada sem que se possua um quadro docente bem qualificado, investimento em pesquisas e uma boa biblioteca. Aí está o cerne do problema.
Em matéria recente publicada no jornal Diário da Manhã, foi mostrado que faculdades particulares estavam demitindo professores com mestrado e doutorado,mas, em contrapartida, estavam contratando professores menos qualificados, reduzindo, assim, custos e, consequentemente, aumentando os lucros – objetivo principal de qualquer empresa privada no sistema capitalista.
Outro problema é que além da baixa qualificação dos professores e do baixo nível dos alunos mal selecionados, a maioria das faculdades particulares não desenvolve pesquisas. Isso limita o trabalho do próprio professor, que mesmo tendo mestrado ou até doutorado não pode desenvolver pesquisa, fazendo com que os títulos de mestre e doutor fiquem apenas como algo decorativo, visto que a função principal de tais titulações é a formação de docentes pesquisadores, para o bom desenvolvimento da ciência.
Os resultados do Exame da OAB nos mostram uma realidade sombria, onde professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem, uma realidade onde o melhor negócio não é ser um advogado bem-sucedido, um juiz, ou promotor, ou qualquer outro cargo público que remunere bem, e, sim, ser dono de bar que funcione na porta das faculdades. Com certeza, esse é o melhor negócio do mundo “jurídico” atual.
A situação só não é pior porque os números são mascarados, visto que a maioria dos aprovados faz cursinho. Só que a OAB não informa os nomes dos cursinhos. Nesse sentido, os grandes responsáveis pela aprovação se tornam os cursinhos e não as faculdades. Portanto, se não existissem os cursinhos preparatórios ao Exame de Ordem, os números, com certeza, seriam bem piores.
Infelizmente, em vez de lutarmos para que as outras profissões criem exames parecidos, na contramão da melhoria da qualidade do ensino jurídico, há um movimento no sentido de acabar com o Exame de Ordem, sob alegação de uma inconstitucionalidade já declarada inexistente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, mesmo que o exame fosse inconstitucional, o correto seria mudar a Constituição e fazê-lo constitucional, e não acabar com ele. O Exame de Ordem, mais do que legalmente correto e justo, é moralmente correto e justo!
O Exame de Ordem tem que continuar existindo não por ser legal, constitucional, e ele é. Mas, sim, porque é moralmente correto, é justo, é a maneira mais eficiente para garantir uma qualidade mínima e mostrar para muitos alunos que eles deveriam ter ficado menos no “boteco” e mais na biblioteca. Para mostrar também a muitos alunos que se esforçaram e mesmo assim não conseguiram êxito, que eles foram vítimas de “estelionato” na faculdade em que estudaram. E em alguns casos, para aqueles que estão preparados e mesmo assim não conseguem aprovação, tenham mais calma na hora da prova, só lhes falta isso.


Eduardo de Souza Barros é bacharel em Direito pela UFG – campus cidade de Goiás –, com especialização em Direitos Humanos pela UCG. É advogado (eduardobarrosadv@hotmail.com)