Com as letras do coração

Com as letras do coração (Diário da Manhã, 25/02/09)

O arquiteto Elder Rocha Lima viveu na última semana a consagração de mais uma conquista. Aos 81 anos, ele acaba de apresentar ao público duas de suas mais recentes obras como escritor, carreira que ainda encontra pouco espaço na agenda deste homem de múltiplas funções. Artista plástico, desenhista, crítico de arte e professor aposentado, Elder se autodenomina escritor eventual, já que começou a se aventurar no mundo das letras há poucos anos, depois de se aposentar. “Não me acho digno do título de escritor”, explica.

O gosto e o talento para a literatura, no entanto, ficaram mais que evidentes em Guia Afetivo da Cidade de Goiás e Itinerário Cora Coralina, livros lançados em eventos na Casa do Patrimônio, Goiânia, e Museu Casa de Cora Coralina, na cidade de Goiás. As obras, produzidas em parceria com o Ministério da Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), são, na verdade, uma retribuição a tudo que o município representa para o autor, que escreve semanalmente para o Diário da Manhã. “Achei que poderia colaborar com a divulgação da cultura e história daquele lugar”, conta.

Na noite de quinta-feira, durante o lançamento na Capital, o clima era de saudosismo e satisfação. “É como ver um filho nascer”, comparou o autor, acompanhado de perto pela mulher Beatriz Rocha Lima, com quem cultiva uma relação de 51 anos, e pelo filho Marcelo Feijó, fotógrafo. Pai de cinco filhos e avô de sete netos, Elder Rocha foi parabenizado por amigos, parentes e por representantes do Iphan, que apoiaram e acompanharam de perto a produção dos livros. Também estiveram presentes no lançamento o secretário municipal de Cultura, Kleber Adorno, e a presidente da Agência Goiana de Cultura, Linda Monteiro. “Tinha que ver as obras publicadas antes de bater com o rabo na cerca”, brincou o autor, fazendo uso da expressão interiorana que refere-se à morte.

Elder Rocha é um dos mais ilustres artistas plásticos goianos. Filho caçula, nasceu na cidade de Goiás no ano de 1928, onde viveu até os 10 anos de idade. Mudou-se para Goiânia, de onde partiu aos 22 anos, para fazer faculdade de Arquitetura no Rio de Janeiro. Na capital fluminense, conheceu Beatriz, colega de turma com quem se casou cinco anos depois. “Ela não me dava bola, mas insisti até ela ceder”, conta apaixonado. Em 1957, voltou para Goiânia e, logo depois, passou a lecionar na Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 1964, partiu para a capital federal, onde criou os cinco filhos, Ana Beatriz, Guilherme, Elder, Helena, já falecida, e Marcelo, companheiro do pai em projetos profissionais.

Na manhã que antecedeu o lançamento dos livros, Elder Rocha Lima, que divide a residência entre Brasília e Pirenópolis, recebeu a equipe do Diário da Manhã no saguão do modesto hotel onde costuma se hospedar em Goiânia. Solícito, falou sobre a vida na antiga Vila Boa, suas saudades e suas pretensões profissionais. No rosto, marcado pelo tempo, o sorriso singelo denunciava o entusiasmo com as novas criações e o desejo de engrandecer a alma e o povo da cidade que o viu nascer. Segue entrevista:


DMRevista – Por que o senhor se define como um escritor eventual?
Elder Rocha Lima – Na realidade, eu comecei a escrever com mais assiduidade de poucos anos para cá, depois da minha aposentadoria como professor e depois que eu fechei meu escritório de arquitetura. Então, não sou um profissional da literatura, apesar de ser apaixonado por ela. Sou capaz de ler até catálogo telefônico (risos). Não me acho um sujeito que possa ser entitulado escritor, pois não escrevo com a mesma assiduidade de um profissional.

DM – O senhor se considera um saudosista?
Elder – Eu não sou um saudosista no sentido de que estou velho e tenho saudade dos tempos passados. Não é isso. Eu acho que nós estamos vivendo uma época muito triste, uma época de crise de valores, crise econômica, crise política. Então, isso me permite imaginar que nós temos alguns valores que foram abandonados. Eu tenho saudades desses valores. Não sou como aquele velho chato que vive dizendo “no meu tempo tinha isso, tinha aquilo”. Esses livros me permitem resgatar alguns valores perdidos e precisam ser restabelecidos. Nesse sentido, eu tenho saudade.

DM – Que livro o leitor deve ler primeiro, o Guia Afetivo da Cidade de Goiás ou o Itinerário Cora Coralina?
Elder – O Guia. Nele, você tem o panorama global da cidade. É um projeto que desenvolvi ao longo de muitos anos. Só desenhos são 70. Já o Itinerário Cora é um panorama particular. É uma história curiosa. Cora Coralina passou 40 anos fora de sua terra e quando ela volta, sua alma poética brota. É um negócio curioso. Suas recordações de infância fizeram com que ela enxergasse a cidade com os olhos da criança que ela foi e da adulta que ela era quando regressou.

DM – Em poucas palavras, como o senhor definiria cada um desses livros?
Elder – O Guia Afetivo tem seu lado, digamos assim, informativo e pretende dar ao leitor um retrato da cidade. Evidentemente, é um retrato feito por alguém que não pode ser isento totalmente. Então, eu dou também a minha versão. O livro traz fatos históricos, mas um pouquinho de lendas também. O Itinerário é um projeto de meu filho, Marcelo Feijó. Traz a visão de uma pessoa extraordinária, uma mulher independente e muito confiante. Na realidade, historicamente, ela foi expulsa da cidade, fugiu com um homem casado. Naquela época, isso era um horror. Mas Cora teve a coragem de assumir esse amor, e eles viveram felizes. Então, ela assumiu posição feminista numa cidade extremamente conservadora como Goiás.

DM – Quais as primeiras lembranças que vêm à cabeça quando o senhor pensa em Goiás?
Elder – Vem um turbilhão de imagens, mas, sobretudo, a recordação familiar, meus pais, meus avós. Lembro também da paisagem, porque a cidade de Goiás teve o privilégio de nascer num local geograficamente muito bonito. Só encontrei no Brasil uma cidade com beleza semelhante, em Minas Geria, Tiradentes. Então, isso me agrada, como me agrada também aquela arquitetura singela e ingênua. É uma cidade feita à mão, sem a contribuição dos sabidos.

DM – Em Guia Afetivo, o senhor diz justamente isso, que a cidade nasceu quase que por acaso, por mãos de pessoas simples, sem projetos ou planejamentos. É isso que faz Goiás especial?
Elder – É isso, exatamente. Aliás, quando foi organizado o documento para o pedido junto à Unesco de aceitação da cidade como monumento mundial, os membros da entidade que vieram a Goiás para analisar o local chegaram a esta conclusão. A constatação faz parte do relatório que concede à cidade o título de Patrimônio da Humanidade, não pela riqueza, mas pela singeleza, pela pobreza bem aproveitada. Quem vai a Goiás esperando ver suntuosidade, vai perder seu tempo. Goiás é uma cidade simples, com características portuguesas, plantada nos trópicos.

DM – Por que o senhor decidiu transferir seu amor pela cidade para as páginas dos livros?
Elder – Não foi por um acaso. Eu achei que, modestia à parte, por uma série de circunstâncias, reunindo algumas características e qualidades, eu poderia fazer um documento sobre Goiás. Na condição de filho da terra, de arquiteto, apaixonado pela arquitetura do período colonial brasileiro, achei que tivesse condição para isso. Eu sou pintor e desenhista, mas com um apelo muito grande ao trabalho documental. Pensei que seria interessante fazer um documento sobre a vida daquela cidade. Mesmo não sendo historiador, mas tangenciando a história, eu poderia fazer um documento completo.

DM – Nos livros, o senhor se refere aos lagradouros de Goiás pelos nomes populares e não pelos oficiais, que geralmente homenageiam políticos ilustres. O senhor acha que alguns políticos recebem homenagens sem merecer?
Elder – Você tocou num assunto um pouco delicado. Eu desenvolvi uma certa aversão a políticos, não à política. Principalmente agora, que estamos dominados por um quadro político muito ruim. Normalmente, esses políticos são homenageados com nomes de ruas ou praças enquanto estão no poder. Depois que eles saem, alguém troca o nome e pronto. Eu já fiz sugestões para os administradores da cidade para que, quando trocarem os nomes nas placas, conservem abaixo o nome antigo. Na cidade de Goiás, ninguém conhece os locais pelos nomes oficiais, mas por aqueles instituídos ao longo da história. E não é só em Goiás. Quando eu era estudante, no Rio, trocaram o nome do local onde a gente morava, o Largo do Machado, por Praça Duque de Caxias. À noite, a gente foi lá e retirou as placas (risos). Aí, eles colocaram de novo, e a gente tirou de novo. Na terceira vez, eles desistiram.

DM – Existe alguém que merecia ser homenageado em Goiás e não foi? Se pudesse batizar algumas ruas, quem homenagearia?
Elder – Muitas pessoas mereciam ser homenageadas. Por vezes, não são nem políticos de expressão, mas são pessoas corretas. Vou lhe dar um exemplo concreto. Não estou me lembrando se tem alguma rua ou praça como o nome dele e posso até estar cometendo uma injustiça. Mas existe um homem, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, que foi professor do Liceu de Goiás, uma instituição antiquíssima. Ele merecia ser homenageado. Durante 20 anos, sozinho, ele escreveu o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Qual foi minha surpresa ao saber recentemente que Chico Buarque de Holanda recorre a esta obra, deixada por seu pai. Esse dicionário está esgotado e custa uma fortuna em lojas de livros antigos. Fico me perguntando: por que o Estado não reedita isso? Esse homem merece mais do que uma homenagem. Assim como ele, você vai encontrar outras pessoas, algumas que viveram numa rua qualquer por toda a sua vida, pessoas boníssimas.

DM – Por falar em política, o senhor nunca pensou em se enveredar por esse caminho?
Elder – Nunca. Eu até fiz política estudantil, fui atuante, mas era outra história. Eu não gosto, me dá uma certa alergia. Tenho alguns amigos políticos. Mas somos amigos aqui e a política é à parte.

DM – Que lugares da antiga Vila Boa, em especial, marcaram sua vida?
Elder – O Bairro do Areião, onde eu morava e passei grande parte da minha infância. O Poço Rico, lá no Bairro do Bacalhau, onde tomava banho quase todos os dias. O Lago do Chafariz, que ficava perto do Colégio Santana, onde eu estudei. A Praça do Coreto porque é o centro da cidade e abriga uma série de imóveis importantes, como a Igreja da Boa Morte, e tem uma importância histórica grande e me faz lembrar dos carnavais da minha infância.

DM – E a comida? De qual tem mais saudades?
Elder – (risos) Aí você tocou num assunto que me apaixona muito. A pamonha e o empadão são meus preferidos. Aliás, adoro tudo que vem do milho verde. Também o empadão goiano que minha mãe fazia; o bolo de arroz, não tem igual. Aliás, toda a culinária goiana é muito rica.

DM – Se pudesse voltar no tempo, que momento gostaria de reviver?
Elder – Não digo um momento só, mas vários. Meu casamento, por exemplo, o nascimento dos meus filhos. São cenas marcantes e que me emocionaram muito.

DM – Com tanto amor por Goiás, por que decidiu ir embora?
Elder – Em primeiro lugar, não me mudei de Goiás. Sou profundamente goiano e apaixonado por esse estado. Sou interessadíssimo pela cultura goiana. Mudei para Brasília porque vivia num ambiente de perseguição política. Em 1964, fui demitido da universidade pelo governo militar e me ofereceram uma oportunidade de trabalho muito boa em Brasília. Mas sempre trabalhei lá e cá.

DM – E sua ligação com Pirenópolis?
Elder – Meus amigos de lá vão ficar bravos comigo (risos). Mas Pirenópolis me lembra muito a minha cidade. É mais conveniente pela distância também. Ir a Pirenópolis é mais fácil do que vir à cidade de Goiás, são só 150 quilômetros. Tenho amigos, parentes e uma casa lá, onde mantenho meu ateliê.

DM – O senhor se casou com uma gaúcha. Durante esses 51 anos de relacionamento, ela ficou mais goiana ou o senhor ficou mais gaúcho?
Elder – Ela é goiana e doidinha por pequi (risos), além de falar como goiana. Quando ela vai ao Rio de Janeiro, a família nota o sotaque daqui e fica até assustada. Ela se adaptou muito bem e participa comigo desse envolvimento com a cultura goiana. Eu acho que Goiás está assumindo mais sua cultura e isso para mim tem uma importância muito grande.

DM – Mesmo aos 81 anos, o senhor não para de pintar, escrever. E o descanso?
Elder – Tem uma frase de um pensador, que não me lembro o nome, que diz “quando você trabalha no que gosta, você fica à toa”. Eu tenho um prazer muito grande no que eu faço hoje, escrever, desenhar, pintar. Esses projetos são tão prazerosos. É lógico que há contrariedades no meio do caminho, coisas não funcionam bem, o computador enguiça, eu fico mal-humorado, minha mulher sofre com isso. Mas você lida com pessoas tão agradáveis, tão ricas e a atividade fica tão prazerosa. Isso não me cansa. Eu trabalho de manhã à noite, com a maior tranquilidade. Estou com 81 anos e não sinto o peso da idade.

DM – Quais os outros projetos em andamento?
Elder – Eu e o Marcelo Feijó, o filho que me acompanha nessa área, estamos preparando um projeto sobre a obra de Veiga Valle, considerado um dos maiores escultores brasileiros. Hoje, ele é citado como referência em qualquer escola de arte. Estamos programando um livro com textos e fotos. Estamos também pensando um fazer o projeto de um museu virtual em Goiás, como já foi feito em Ouro Preto. Pretendemos ainda completar um trabalho sobre a pintora Goiandira do Couto. Outro trabalho, já pronto, é a biografia do pintor Otto Marques, que só falta ser editada. A renda obtida com a venda dos livros que lançames hoje servirá para financiar esses e outros trabalhos.

DM – O senhor não pensa em voltar para Goiás?
Elder – É difícil. Eu já estou na idade em que dependo dos filhos. E eles estão todos lá.


Guia Afetivo da Cidade de Goiás
Editora: Iphan
144 páginas
Preço: R$ 20

Itinerário Cora Coralina
Editora: Associação Casa de Cora Coralina
120 páginas
Preço: R$ 20