Lição de vida nas ruas

Lição de vida nas ruas (Hoje Notícia, 24/05/09)

A primeira vez que varreu a sujeira que sempre é deixada após as vendas da Feira Hippie, em Goiânia, a gari Eliamar Rodrigues Barbosa, 33, teve uma crise de choro, a ponto de ser carregada por outros colegas, até o caminhão que os transportou. O fato ocorreu três dias depois de ter sido contratada, efetivamente, como servidora da Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg).

A opção pelo concurso público veio quando perdeu o cargo comissionado de recepcionista e digitadora, em um posto de saúde da capital, no ano de 2007. “Meu marido trabalha, mas preciso garantir uma renda extra para o sustento de dois filhos. Ser concursada dá estabilidade”, afirmou. Apesar da segurança do atual emprego, ela quer mudar de vida. Para tanto, com o salário que recebe da Comurg, também paga o curso superior de Serviço Social na Faculdade Araguaia. “Meu sonho sempre foi trabalhar como assistente social”, disse.

Assim como Eliamar, o gari José Merilho, de 44 anos, é exemplo para os demais colegas. Artista plástico e formado em Teologia pela Universidade Católica de Goiás, agora ele está se preparando para as provas do mestrado em Antropologia, na Universidade Federal (UFG). “Sempre incentivo meus companheiros a estudar, principalmente aqueles que pararam de frequentar a escola, antes de concluir o Ensino Médio”, destacou. O gari, muitas vezes, chegava mais cedo à “garagem” de Campinas para estudar e ler seus livros dos tempos da faculdade.

Merilho também optou pelo concurso público depois de não ter o contrato, como educador social, renovado pela atual gestão municipal.

DIGNIDADE
Embora afirme não ter mais tanta vergonha da profissão, Eliamar Rodrigues ainda esconde o que faz de algumas pessoas. “É um trabalho digno como outro qualquer, mas a própria sociedade discrimina o gari”, ressaltou. “Outro dia, vi uma mãe que, para punir a desobediência do filho, disse que o entregaria para o ‘lixeiro’. Às vezes, quando passamos nas ruas, as crianças saem correndo, de medo”, relatou. Ela fez questão de dizer que, quando alguém se refere à profissão dela como “lixeiro”, logo corrige: “Somos coletores”.

Ao contrário das dificuldades enfrentadas pela colega, José Merilho garante que tem muito orgulho de ser gari. Do dia a dia no trabalho, que começa às 17 e termina às 23 horas, ele ainda tira lições para sua vida profissional. “Na semana passada, uma mulher viciada em crack queria que eu comprasse uma cesta básica, que ela havia ganhado, por 5 reais. Preferi pagar um lanche”, contou. “A realidade das ruas sempre me faz pensar naquilo que posso fazer para mudar o meio onde vivo”, disse Merilho.

Formando em História pela Faculdade Sul D’Ámérica, em Aparecida de Goiânia, o gari Wenderson Alves Ferreira, 30, também se orgulha da profissão, embora destaque que a opção pelo concurso também veio por causa da estabilidade financeira. Ex-cozinheiro de restaurante, ele relatou que também já sofreu discriminação nas ruas. “Uma mãe falou ao filho, que não queria entrar em casa para estudar, que o resultado da negação seria virar gari. Não aguentei e fui perguntar qual era a formação dela. Ao dizer que tinha concluído o Ensino Médio, rebati o preconceito informando que estou concluindo o curso de História”, relatou

Segundo a psicóloga Romênia Gomes, especialista em Gestão de Pessoas e Marketing, a busca pela qualificação, mesmo depois de ter passado em um concurso público, é importante para manter os objetivos de crescimento. “Muitos têm a concepção de que virar servidor público significa trabalhar pouco. Esse pensamento é típico do acomodado.”