Um mal que pode ser erradicado pelas mãos
Um mal que pode ser erradicado pelas mãos
Casos no Huapa alertam para a falta de controle da infecção em hospitais, que poderia ser evitada com medidas simples de higiene, como lavar as mãos antes e depois do atendimento
ANDRÉIA BAHIA (13/03/2010)
Há quase 25 anos, os brasileiros acompanharam a agonia do presidente eleito Tancredo Neves, que morreu no dia 21 de abril de 1985 depois de passar por sete cirurgias e tomar dezenas de antibióticos. Ele foi vítima de infecção hospitalar. A partir da morte de Tancredo os hospitais brasileiros passaram a adotar medidas mais rígidas para o controle da infecção hospitalar, apesar de o Programa Nacional de Controle de Infecção Hospitalar do Ministério da Saúde ser de 1982. Mas o controle está longe de ser eficiente.
É o que demonstra a situação em que se encontra o Hospital de Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa). Em um ano, 88 pacientes teriam morrido vítimas de infecção hospitalar, o que levou a Secretaria de Saúde do Estado a suspender as internações na unidade no início da semana passada. Na sexta-feira, 12, a secretária de Saúde, Irani Ribeiro, anunciou a retomada das internações na unidade alegando que o hospital está apto a receber pacientes. O Huapa passou por um processo de desinfecção que não excluiu nem as luminárias.
Nos hospitais brasileiros, a taxa de infecção hospitalar é de 9%, segundo Panorama do Controle da Infecção Hospitalar no Brasil, elaborado pela Anvisa. De 100 pessoas internadas, nove apresentam algum tipo de infecção contraída no hospital. No Huapa, foi anunciado que a incidência chegou a 88,23%, em abril do ano passado.
Segundo o médico infectologista Boaventura Braz Queiroz, que faz parte de uma comissão extraordinária criada pela Secretaria de Saúde para investigar a situação no Huapa — que vem sendo definida como surto, mas que pelo período que a infecção está instalada se tornou um quadro crônico e não agudo — há dúvidas em relação ao índice de infecção apresentado pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Huapa. “Todos os prontuários de pacientes elencados anteriormente vão ser revistos para saber o que é infecção hospitalar e o que é infecção comunitária e se arrastou para dentro do hospital.” No primeiro relatório apresentado pela comissão, na sexta-feira,12, os infectologistas que compõem a comissão extraordinária divulgaram que foram feitas as análises de dois prontuários de pacientes que morreram no Huapa. Nos dois casos foi descartada a ocorrência de infecção hospitalar. “Eles morreram vítimas de infecção comunitária provocada por apendicite”, afirmou Boaventura de Queiroz. Os outros 24 prontuários ainda vão ser analisados pela comissão.
Todavia, a simples visita ao hospital ainda na segunda-feira, 8, havia apontado “procedimentos que podem ser melhorados”, afirma o médico, que é diretor do Hospital de Doenças Tropicais (HDT) da Capital. “O que vai exigir mais treinamento dos profissionais que trabalham na unidade.” Para começar, a comissão já sugeriu a contratação de mais pessoas para trabalhar na limpeza do hospital. Segundo o diretor do Huapa, Gelson José do Carmo, dos 31 itens a serem melhorados no hospital, listados pela comissão de infectologistas e também pela Vigilância Sanitária e Ambiental, apenas um ainda não foi atendido. Está relacionado à climatização de uma sala que é muito grande e o ar-condicionado não consegue refrigerar.
O médico Boaventura Queiroz descarta culpar alguém pelas mortes. Segundo ele, a responsabilidade do serviço hospitalar é de todos, começa com a pessoa que trabalha na limpeza e vai até o médico que vai realizar o procedimento cirúrgico. Todos devem adotar técnicas adequadas no intuito de reduzir os riscos da infecção. Mas em algum momento, um ou mais profissionais do hospital podem ter deixado de fazer o que está previsto nas normas de controle da infecção hospitalar, o que teria disseminado bactérias pela unidade e contaminado 126 pacientes, dos quais 88 teriam morrido. Boaventura afirma que desde o ano passado a comissão de controle de infecção hospitalar do Huapa já vinha adotando medidas para debelar a infecção. “Houve avanços e melhorias, mas não foram suficientes”, avalia.
Medidas
A Coordenação Estadual de Controle de Infecção Hospitalar da Superintendência de Vigilância Sanitária e Ambiental do Estado acompanha o quadro de infecção hospitalar no Huapa desde o ano passado e no fim do ano chegou a sugerir medidas a serem tomadas pela direção. A coordenadora do departamento, Elizabeth Teixeira Borges Martins de Oliveira, não respondeu aos contatos da reportagem para explicar porque, mesmo assim, a infecção não foi controlada no hospital.
Além do órgão estadual, o Ministério da Saúde preconiza que o município também tenha uma instituição de controle de infecção hospitalar. “A priori, estes órgãos devem desenvolver um trabalho de normatização dos procedimentos a serem adotados no ambientes que promovem a saúde”, explica Boaventura Queiroz. Em Aparecida de Goiânia, não há essa comissão.
Diversas bactérias foram detectadas no hospital pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Huapa, mas a quantidade de microorganismos não influencia na dimensão da infecção, explica Boaventura Queiroz. Segundo ele, uma comissão de controle de infecção que se preze tem o levantamento da prevalência de todas as bactérias que forem detecadas no hospital. “Mas para um determinado tipo de infecção uma bactéria só pode representar 80% de todas as infecções e os outros 20% serem constituídos de cinco, seis bactérias.” A resistência da bactéria também não é o que provoca o quadro infeccioso, afirma o infectologista. “É uma questão mais profunda que considera também a condição do paciente. Quanto mais se investe no paciente, maior o risco de se criar um germe multirresistente.”
Anaclara Ferreira Veiga Tipple, doutora em enfermagem e coordenadora do Núcleo de Prevenção e Controle da Infecção Hospitalar da Faculdade de Enfermagem da UFG, explica que o microorganismo encontrado na UTI do Huapa, onde teve início a infecção, é responsável principalmente por infecção em pacientes que se encontram em uma situação de vulnerabilidade. “O paciente que está em uma UTI tem diversos fatores de risco relacionados à própria internação para desenvolver uma infecção.” Está sujeito a vários procedimentos invasivos, fica internado por um tempo prolongado e pode vir a receber ventilação mecânica. “E o microorganismo encontrado no Huapa tem uma resistência em termos de sobrevivência, pode desenvolver resistência aos antibióticos e em um paciente imunossuprimido (aquele que está usando medicação imunossupressora, que reduzem a imunidade) há uma chance muito grande de levar a uma infecção.”
No entanto, Anaclara Tipple, que é também vice-presidente da Comissão de Controle de Infecção da Faculdade de Odontologia, considera alarmantes os índices de infecção detectados no Huapa. “Muito superiores àqueles que são aceitáveis.”
Ela explica que a infecção hospital é um problema de saúde pública e que pode ser endógena. “A gente sempre quer achar que o problema é externo, que foi falha no sistema.” Mas ela admite que existe muita negligência no sistema de controle de infecção hospitalar, apesar de considerar que houve muitos avanços nos últimos tempos. “Se pegarmos o que tivemos na época do Tancredo Neves para hoje, no tempo da história não é um período longo, e já evoluímos muito.”
Boaventura Queiroz considera que os índices de infecção tolerados em uma UTI é de 8%. Anaclara Tipple afirma que a taxa aceitável nas UTIs varia entre 10% e 12% das infecções e, fora das UTIs, espera-se que fique de 1,5% a 3%. Por isso os 88% detectados no Huapa são assustadores. “Provavelmente tem relação com a própria condição dos pacientes, mas historicamente a gente sabe que há negligência em relação às medidas de controle também.” Sabe-se que a infecção no Huapa se estendeu para as outras áreas do hospital e, segundo Anaclara Tipple, isso ocorre porque a bactéria “vai de carona” com as pessoas, nos equipamentos, nas mãos dos profissionais de saúde.
Responsáveis
Diferente de Boaventura Queiroz, a enfermeira afirma que há responsáveis pelo quadro, não uma pessoa, mas um eixo. Segundo ela, existe uma política nacional para controle de infecção, que é de 1998 e carece de atualização, mas se cumprida é eficiente. “A gente pode ter uma política nacional, as comissões de controle de infecção dentro dos hospitais que estabelecem as diretrizes, mas quem cumpre as normas é o ser humano chamado profissional da saúde. Nesse ponto a responsabilidade é individual.” Ela vê falha em todo sistema e cita um problema grave na saúde pública, a falta de material. “Pode ter havido falha na limpeza. E parece que faltou material para a limpeza.”A saída para um diretor de um hospital onde falta material de limpeza deveria ser fechar a unidade, mas segundo Anaclara há que se avaliar o impacto do fechamento da unidade para a sociedade. Segundo ela, a solução deve ser encontrada dentro da instituição sem transferir os pacientes, que poderiam exportar a infecção para outras unidades de saúde.
Surtos de infecção hospitalar são muito frequentes. Segundo a enfermeira, ocorrem mais em hospitais particulares que nos públicos, mas ela não se lembra de nenhum da gravidade do que ocorre no Huapa. Anaclara Tipple aponta como problema sério no controle das infecções em hospitais as chamadas comissões de papel. A comissões de controle de infecção passaram a ser obrigatórias para todos os hospitais a partir de uma portaria de 1998 e, para burlar a lei, os hospitais instituem comissões fantasmas. “Grande parte dos hospitais têm comissão de controle de infecção fantasma, que não tem indicadores”, afirma. E são os indicadores, não só de estrutura, mas de processos, que subsidiam a evolução do controle da infecção no país.
Na opinião de Anaclara Tipple, as falhas no controle da infecção indicam o caminho para o acerto. Ela cita as contratações de novos integrantes para comissão do Huapa como uma avanço, apesar de admitir que essa medida poderia ter sido tomada antes da morte de 88 pacientes. “Mas, por outro lado, que bom que isso (as contratações) aconteceu.” Ela lamenta que tem se aprendido pouco com os surtos, uma vez que as formas como a contaminação se dá já estão epidemiologicamente muito bem estabelecidas.
“Quando se tem uma infecção com um microorganismo como o encontrado no Huapa, ao primeiro sinal de alerta é preciso chamar o profissional de saúde à responsabilidade. Explicar que esse é um paciente que precisa ser tratado de uma maneira mais cuidadosa por precaução.” A negligência é que leva a transmissão da bactéria porque, as vezes, o profissional de saúde sequer lava as mãos. Essa é uma das medidas consideradas fundamentais para se evitar a contaminação.
Lavar as mãos
Quinze de maio é o dia nacional e mundial de infecção e foi nessa data, em 1840, que o médico húngaro Ignaz Philipp Semmelweis, considerado o pai do controle de infecções hospitalares, colocou na porta de seu consultório em uma maternidade na cidade de Viena uma norma muito simples: todos que entrasse deveriam lavar as mãos. A queda dos índices de infecção foi de 12,24% para 1,89%. “E essa é uma técnica que a gente ainda precisa lembrar, porque temos negligenciado essa medida que é muito simples. Os profissionais da saúde precisam lavar as mãos no sentido literal da palavra e não no sentido de Pilatos.”
Para a enfermeira, a própria condição da equipe de enfermagem, que é a grande força trabalho do serviço de saúde, influi no processo de controle da infecção hospitalar. “É uma equipe muito mal remunerada historicamente.” O que leva estes profissionais a assumir duplas e até triplas jornadas de trabalho. Muitas vezes estes profissionais saem da UTI de um hospital e entram em outra, com o risco de transferência de microorganismos de uma unidade para outra.
Na opinião de Boaventura Queiroz, a baixa remuneração dos médicos não influencia nesse quadro. “Se observarmos 20 anos atrás, o salário dos médicos era muito pior que hoje e nem por isso as pessoas não trabalhavam direito naquela época. É um objetivo de todo profissional de saúde ter um ganho digno, mas ele não deve perder sua meta de ter um serviço com qualidade.”