Processos se arrastam por anos

23 ONDE ELES ESTÃO?

 

Falta de corpos e de testemunhas dificulta denúncias, afirma promotor

O coordenador do Grupo de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público estadual, promotor José Carlos Miranda Nery Júnior, também fala da dificuldade de punir policiais que cometem este tipo de crime. "Na maioria dos casos, não temos um documento comprobatório da morte, portanto não há materialidade do crime. Também esbarramos na dificuldade em ouvir testemunhas dessas abordagens", conta.
Porém, desaparecer com os corpos para dificultar a comprovação de materialidade de uma execução não impossibilita a denúncia. José Carlos Miranda Nery Júnior diz que existem casos investigados pela Polícia Civil e pelo próprio MP em que houve grande dificuldade em provar o desaparecimento de pessoas após abordagens policiais e ainda assim, os suspeitos foram denunciados. Contudo, os processos podem demorar anos na Justiça. "São muitos recursos e o processo pode demorar anos até serem concluídos".
Quando fala das dificuldades em investigar esse tipo de crime, o promotor lembra do desaparecimento mais recente em Goiás. Adriano Souza Matos e Brunno Elvys Lopes desapareceram no dia 22 de novembro do ano passado em frente ao Parque Agropecuário, na Nova Vila, por volta do meio-dia.
"Muitas pessoas viram a abordagem do Batalhão de Choque da PM aos dois jovens e, até agora, somente uma pessoa esteve no Ministério Público apresentando-se como testemunha. E lá é muito movimentado. O restante do procedimento encaminhado à Polícia Civil por nós é oriundo da sindicância da própria Polícia Militar", contou.
Violência
O sociólogo Dijaci David de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás (UFG), existem dois tipos de desaparecimentos: o forçado, resultado de perseguição política, étnica ou de raça por parte do Estado; e o civil, a de cidadãos que por alguma razão somem. "Esta razão pode ser a violência institucional, por parte da polícia", diz.

No desaparecimento forçado, como é o caso dos desaparecidos políticos do regime militar, o Estado pode ser responsabilizado por atos praticados por seus representantes e as famílias dos desaparecidos podem ser indenizados. Segundo Dijaci de Oliveira, alguns advogados trabalham com a hipótese de que os desaparecimentos de pessoas após abordagens da polícia também deveriam gerar indenizações, já que se trata de uma violência estatal, mas ainda não há prerrogativas legais para tal.
O sociólogo admite, porém, que se o Estado fosse responsabilizado por tais crimes, haveria uma possibilidade maior do próprio Estado agir contra os autores desses delitos. "Por enquanto, investigações de desaparecimentos civis são exigidas atualmente pela lei somente quando a vítima é criança, adolescente ou incapaz", diz.
Nos demais casos, a estrutura da polícia é insuficiente. "Não há treinamento para a polícia atuar nessa questão. A polícia não instrui como a família deve agir, não segue um planejamento, nem mesmo na tabulação das informações", critica.
"Ligaram na noite de Natal, mas era trote"
Assim que acabou a queima de fogos de artifício na noite de Natal, a dona de casa Luzinete Souza Marinho, de 48 anos, recebeu um telefonema. Era um trote no número divulgado pela família para informações sobre o paradeiro do office-boy Adriano Souza Matos, de 22.
Ele desapareceu por volta do meio-dia do dia 22 de novembro de 2010, com Brunno Elvys Lopes, de 16 anos, após saírem de uma agência lotérica do Jardim Guanabara. Depois de pagar a conta, os dois foram de moto até as proximidades do Parque de Exposições Agropecuárias de Goiânia, na Nova Vila.
Eles foram abordados pelo cabo Novandir Rodrigues da Silva e pelos soldados Cleber Carlos Borges, Wendell da Silva Borges e Wellington Alves Magalhães, do Batalhão de Choque formada. Os rapazes e a moto CB 300 vermelha, placa NVV-6381, de Goiânia, nunca mais foram encontrados. "Com a ligação na noite de Natal, imaginei que ele me fizesse uma surpresa e aparecesse, mas isso não aconteceu", diz a mãe. Militar reformado da PM, o pai de Brunno, Kedson Pinheiro Araújo, de 43, disse que está com o coração "esbagaçado". Dando murros no peito, ele gritava, durante a entrevista, que a dor é muito grande e que vai procurar todos os recursos da Justiça para punir os responsáveis pelo desaparecimento de seu filho. O desaparecimento dos dois jovens é está em fase de investigação pela Corregedoria da Polícia Militar, pelo Ministério Público e pela Polícia Civil. Os militares estão em trabalho administrativo.

ENTREVISTA | JÚLIO MOREIRA
"Corporativismo ainda prejudica investigações"
Professor universitário e advogado, Júlio Moreira é membro da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo). Ao POPULAR, ele afirma que o desaparecimento de pessoas após abordagens policiais nada mais é que ocultação de cadáveres após execuções sumárias. Leia trechos da entrevista.
O Estado pode ser responsabilizado pelo desaparecimento de pessoas após abordagens policiais?
Assim como nos anos da ditadura militar, hoje o número de agentes policiais envolvidos em desaparecimento de pessoas é impressionante. Isso mostra que há uma política de Estado na questão dos desaparecimentos. Quando o Estado não exerce com eficácia seu dever de solucionar os casos, se torna cúmplice daqueles crimes. Os desaparecimentos de pessoas acabam fazendo parte de uma política de repressão muito usada em outros países, que são os paramilitares ou esquadrões da morte, em estrita conexão com a criminalização da pobreza.
Como assim?
Os pobres, especialmente os jovens da periferia, deixam de ser vistos como um problema social e passam a ser rechaçados como bandidos incuráveis. O Estado não oferece nenhuma perspectiva de vida para essas pessoas, mas nos noticiários sensacionalistas não faltam apelos para a execução sumária de pessoas supostamente envolvidas no tráfico de drogas. Aqueles que passam como "traficantes" não são mais que "comerciantes varejistas de drogas", na expressão usada pela socióloga Vera Malaguti Batista. O discurso de criminalização nunca toca nos elos superiores do negócio das drogas, onde estão pessoas acima de qualquer suspeita.
Que relação essa criminalização da pobreza tem com os desaparecimentos de pessoas?
Os desaparecimentos de pessoas são consequência das execuções sumárias. As pessoas não "desaparecem". O que acontece é a ocultação do cadáver por aqueles que praticam execuções sumárias. E essas práticas expressam o desmoronamento do Estado de Direito: executa-se a pena de morte sem qualquer julgamente oficial para pessoas suspeitas de cometerem delitos. Isso também tem acontecido no Rio de Janeiro. A Associação Juízes para a Democracia se pronunciou sobre esses casos afirmando que "o Estado, ao violar a ordem constitucional, com a defesa pública de execuções sumárias por membros das forças de segurança, a invasão de domicílios e a prisão para averiguação de cidadãos pobres perde a superioridade ética que o distingue do criminoso".

O senhor acha que os crimes de desaparecimento de pessoas no estado são investigadas de forma correta?
No Estado de Goiás, o corporativismo é um grande problema para a solução dos casos de desaparecimento, e isso tem de acabar. As investigações ficam restritas aos órgãos internos das próprias corporações policiais das quais fazem parte os suspeitos de envolvimento nos crimes. É um absurdo que o Ministério Público e demais órgãos do governo concordem com isso. A população e as famílias das vítimas precisam exercer pressão constante e não deixar que os casos caiam no esquecimento. O que se verifica é que as investigações caminham quando há grande atenção da mídia e da sociedade, e que a impunidade se sobrepõe conforme os casos vão caindo no esquecimento.
As famílias podem ser consideradas vítimas de tortura também?
Os familiares das pessoas desaparecidas são vítimas de violações que vão desde a falta de informação até ameaças e torturas psicológicas ou físicas.No começo do mês de dezembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana pelo desaparecimento forçado de pessoas no caso Guerrilha do Araguaia, donde se concluiu que "os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade". Os efeitos dessa decisão vão além do caso específico, importando que o Estado brasileiro passe a adotar uma postura efetiva na prevenção e punição para o crime de desaparecimento de pessoas. A sentença da Corte afirma que os familiares das vítimas de desaparecimentos são violados em sua integridade pessoal.

ANÁLISE
É preciso dar um basta
Mauro Rubem*
Nos últimos oito anos, rotineiramente atendi familiares de crianças, adolescentes e adultos em cuja morte ou desaparecimento há suspeita de envolvimento de policiais militares. Por que isso não acaba?
Pensava que tínhamos chegado ao limite destas ocorrências em Goiás em 2006. Em fevereiro daquele ano, já havia mais de uma dezena de desaparecimentos desde 2000. Estávamos sob o impacto dos casos de Murilo Soares Rodrigues e Paulo Sérgio Pereira Rodrigues (abril de 2005), Fábio da Costa Lima (janeiro de 2006) e da execução de Luiz Antônio Ázara (na semana anterior), quando fizemos uma audiência pública.

As autoridades presentes, representando os poderes instituídos, nos âmbitos federal estadual, se comprometeram em por um fim a esses crimes. Dentre as várias providências que cobramos, uma foi anunciada pela Secretaria de Segurança Pública para o mês seguinte. De custo insignificante: o rastreamento das viaturas (inicialmente da Rotam e Batalhão de Choque) via GPS. É preciso implantá-lo imediatamente. Mas é preciso mais.
As autoridades responsáveis devem mostrar seu compromisso com o Estado de Direito e os Direitos Humanos. Cabe ao governador determinar que os oficiais implicados em crimes, ao invés de receberem promoções e serem condecorados com a Medalha Tiradentes, sejam punidos. Ao Ministério Público, investigar e obter as provas para a sua condenação. À Assembleia Legislativa, deixar de condecorá-los e exigir uma polícia que aja dentro da lei. Ao judiciário, dar celeridade à tramitação dos processos, alguns esquecidos nos armários. É preciso dizer em alto e bom som: basta!
*Deputado (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos, da Assembleia Legislativa de Goiás.