Dívida musical

Uma década de defasagem salarial faz com que orquestras de Goiânia sejam consideradas entre as de piores condições de trabalho no Brasil. Sinfônica Municipal enfim ensaia reestruturação
Rodrigo Alves
Cidade que é celeiro de músicos eruditos, com bom centros de formação, Goiânia tem perdido muitos talentos nessa seara. O motivo é simples e cruel: seus poucos corpos sinfônicos há anos têm pago em média R$ 1 mil brutos por mês a seus músicos, um quinto do valor mínimo recebido por integrantes de algumas das melhores orquestras brasileiras.
O assunto não é novo e por isso a cada dia mostra-se mais urgente. Sem incentivos, quando não vão embora, os músicos que ficam por aqui acabam abrindo mão do precioso tempo para estudar a fim de garantir a subsistência. Há 11 anos, a situação só piora, já que a defasagem salarial aumentou sem qualquer menção de reajuste. "Desde 1999, os músicos de orquestras em Goiânia ganham em média R$ 900, sem atualização", conta o maestro Eliseu Ferreira, à frente de duas das três orquestras da capital goiana.
Dessas três orquestras, duas são mantidas pelo Estado - a Orquestra de Câmara Goyazes e a Orquestra Sinfônica Jovem - e uma pelo Município, a Orquestra Sinfônica Municipal. Todas passaram a última década em situação calamitosa. Somente a Municipal, agora, começa a ganhar um sopro de vitalidade com um recém-aprovado projeto de reestruturação e reajuste salarial para seus músicos (leia mais detalhes na reportagem ao lado).
Sobre as orquestras estaduais ainda paira a indefinição, especialmente quando se fala de estruturação e espaço para ensaios e até apresentações, além, claro, da própria questão salarial. Enquanto isso, os músicos vão sobrevivendo e se virando como podem. Com a entrada de uma nova gestão no governo estadual, O POPULAR foi atrás de autoridades e músicos para saber quais são as expectativas deles. Muitos têm consciência de que estão longe de alcançar uma situação ideal, mas não deixam de manter a esperança. "Sinto uma abertura ao diálogo e por isso não deixo de estar animado", comenta Eliseu Ferreira, até o momento nome mantido no comando das orquestras estaduais.
Pouco dinheiro
Para se ter uma ideia da situação crítica das orquestras goianas, basta citar números da Goyazes, citada entre profissionais como a mais problemática. Nos últimos anos, o orçamento anual da orquestra estacionou nos R$ 300 mil. Em boas orquestras espalhadas pelo Brasil, este é o salário anual médio pago somente ao maestro. A Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) investe R$ 60 milhões anualmente. É um patamar que só em sonhos seria atingido em Goiás, mas a comparação mostra como a defasagem é séria.
Violinista da orquestra, a musicista Cindy Folly é obrigada a sair periodicamente de Goiânia para realizar concertos, cobrindo a ausência de colegas em outras orquestras, para assim complementar a renda. "Como estou cursando mestrado na UFG, não sobra tempo para mais atividades", queixa-se ela, que lembra ainda que, dessa maneira, tem pouco tempo para o necessário descanso físico, o que para o músico, assim como para o atleta, é essencial para manter a qualidade do trabalho.
Para uma das poucas musicistas efetivas da Goyazes, a cravista e pianista Beatriz Pavan, o Estado foi generoso com as orquestras nos anos 90, mas simplesmente deixou de se preocupar com elas nos anos 2000. Música concursada da extinta Orquestra Filarmônica de Goiânia, ela lembra que os salários eram bons e por isso aglutinou muitos músicos de qualidade quando funcionou. "Muitos simplesmente foram embora, quando ela foi extinta. Nós que ficamos, vemos tudo com a ideologia de que quem quer um corpo sinfônico estruturado para Goiânia", afirma Beatriz, que também complementa a renda em concertos fora de Goiás.
Vontade
Ao que parece, tudo é somente questão de boa vontade política. Segundo uma fonte consultada pelo POPULAR, o valor gasto para preparar a cerimônia de reinauguração do Teatro Goiânia, no final do ano passado, em dezembro, incluindo o concerto de gala da Orquestra de Câmara Goyazes, com dois solistas convidados (o pianista Maximiliano de Brito, de Minas Gerais, e o cantor lírico Renato Mismetti, brasileiro que atualmente reside na Alemanha), custou cerca de R$ 100 mil - um terço do orçamento anual do corpo sinfônico. Vale lembrar que durante todo o ano de 2010 a mesma orquestra teve poucas oportunidades de mostrar seu trabalho à população.
O desafio não é tão difícil. Goiânia tem perfil econômico parecido com o de cidades que mantêm boas orquestras públicas como Cuiabá, Ribeirão Preto e Porto Alegre. Em média, essas cidades pagam entre R$ 5 mil e R$ 6 mil iniciais para que seus músicos se dediquem com exclusividade às orquestras. "Um músico precisa estudar para conseguir manter o nível musical. Isso não tem sido a realidade dos músicos de Goiás", ressalta o professor da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, maestro e violinista Alessandro Borgomanero.
O maestro esteve à frente da Orquestra de Câmara Goyazes entre os anos de 2004 e 2007. Durante esse tempo, afirma ter vivido muitas frustrações tentando manter a qualidade do trabalho. "A realidade administrativa não colabora. Desse jeito os bons músicos vão embora em busca de melhores oportunidades. É triste dizer isso, mas incentivo meus alunos a irem buscá-las fora", lastima Borgomanero.
Caso emblemático é o do também violinista Willian Isaac, formado há pouco mais de seis anos pela UFG. Sem perspectivas por aqui, ele se tornou músico da Orquestra Sinfônica de Mato Grosso, em Cuiabá, onde os músicos recebem salários médios entre R$ 3,5 mil e R$ 4 mil. Vez ou outra também desenvolve trabalhos em Brasília, cuja média salarial gira em torno de R$ 6 mil a R$ 7 mil, e em São Paulo. "Mas se tivesse condições de ficar em Goiânia, claro que gostaria de ficar, afinal é onde estão minha família e meu amigos", lamenta.

Bons exemplos
Cidades como Brasília, São Paulo, Salvador, Ribeirão Preto, Cuiabá e Porto Alegre aprenderam a lição: sem incentivo financeiro aos músicos é impossível ter qualidade. Essas cidades só conseguiram desenvolver boas orquestras porque investiram em estruturas que, mesmo pertencendo à esfera pública, se assemelham com as do setor privado. "O músico precisa ser estimulado a estudar. Não acredito, por exemplo, no modelo de músicos concursados, que poderiam se acomodar", defende o maestro Eliseu Ferreira. Os músicos consultados pela reportagem, contudo, veem no concurso público uma das poucas garantias de bons salários e estabilidade.
O maestro Joaquim Jayme, à frente da Orquestra Sinfônica de Goiânia, foi procurado para comentar a situação na esfera municipal, mas como está de viagem ao exterior, não deu retorno. Em outras oportunidades, porém, o maestro ressaltou ao POPULAR que uma de suas frustrações no trabalho na orquestra municipal, que ele ajudou a criar ainda nos anos 90, sempre foi não ter recursos suficientes para pagar bem seus músicos.
Mas uma luz no fim do túnel foi sinalizada no município nos últimos dias. Uma lei que institui o aumento nos salários de músicos pela primeira vez em mais de uma década e - também de forma inédita - cria funções de músicos específicas para a estrutura da orquestra foi aprovada há poucos dias na Câmara Municipal. O Projeto de Lei Complementar 25/2010 reestrutura a Orquestra Sinfônica de Goiânia e trata do reajuste na ordem de 10% nos salários dos músicos da orquestra, pouco, mas um bom sinal. Prevê ainda concurso público para a instituição.
Sanção
Segundo o secretário municipal da Cultura, Kleber Adorno, a lei já está sancionada pelo prefeito Paulo Garcia, embora a versão digital do Diário Oficial que publica a sua sanção não estivesse disponível no site da prefeitura até o fechamento desta edição. "Em alguns casos o aumento é de mais de 10%, dependendo dos diversos níveis, que também estão sendo criados por esta lei", garante o secretário. Segundo ele, a nova legislação aprovada prevê também aumento progressivo nos salários pelo menos até o ano que vem: "Em agosto serão mais 10% de aumento e em janeiro do ano que vem, ainda mais 10%."
Na Agência Goiana de Cultura (Agepel), a entidade responsável pelas orquestras estaduais, a nova gestão pouco pôde adiantar sobre o que será feito pelos corpos sinfônicos estaduais a partir de agora. Com a transição de governo, ainda não houve tempo, segundo a direção da pasta, de levantar informações sobre o assunto. "Agora é que estamos organizando nossa estrutura", disse ao POPULAR o novo presidente, Gilvane Felipe. Ele antecipou, porém, que a Agepel não deve perder recursos, mesmo com a reforma administrativa no Estado. Teoricamente essa perda poderia prejudicar ainda mais as orquestras do Estado. ▩