O dono do Sítio
Lançamento de caixas com obras adulta e infanto-juvenil de Monteiro Lobato revigora trabalhos clássicos e reacende polêmicas sobre possíveis posições racistas do autor
Rogério Borges
A terra mágica em que boneca de pano é gente e sabugo de milho é gente já pode ser encontrada nas livrarias com uma roupagem toda especial, numa caixa com oito obras da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo que a Editora Globo acaba de lançar. Uma grande - e merecida homenagem - àquela que é considerada a mais importante e influente obra infanto-juvenil da literatura brasileira.
Seu autor, Monteiro Lobato, criou um rico imaginário em que misturou lendas brasileiras, como o saci-pererê e a cuca, e a ludicidade da infância, representada pelas reinações de Narizinho e pelas caçadas de Pedrinho. Enredos que também trazem, latentes, uma grande polêmica em torno de possíveis conotações racistas que o autor manifestaria em várias histórias .A caixa que acaba de ser lançada reúne oito títulos: A Chave do Tamanho, A Reforma da Natureza, O Picapau Amarelo, Caçadas de Pedrinho, Memórias de Emília, O Saci, Viagem ao Céu e Reinações de Narizinho. Em resumo, os principais clássicos reunindo a turma do sítio de Vovó Benta e de Tia Nastácia, em edições bem coloridas pelas ilustrações de Paulo Borges, um dos mais respeitados profissionais da área do País. A Globo também está lançando uma caixa com cinco títulos adultos de Monteiro Lobato: Urupês, Cidades Mortas, O Macaco que se Fez Homem, Negrinha e O Presidente Negro. Neles se podem perceber a combatividade característica do escritor e também leituras do Brasil e da sociedade nem sempre bem recebidas atualmente.
Reedições
A reedições da obra de Monteiro Lobato vêm ocorrendo desde 2006, quando a família do escritor conseguiu retomar os direitos de publicação da Editora Brasiliense, que os detinha baseada num contrato assinado pelo próprio Lobato em 1945, com vigência até os direitos autorais dele perderem a validade, 70 anos após sua morte. Os herdeiros alegaram que a Brasiliense repassava apenas 10% do valor obtido com as vendas, mas que estas não eram controladas por nenhum membro da família.
Os descendentes do autor moveram uma guerra jurídica que durou mais de dez anos para poder publicar os livros de Lobato em outro selo. A vitória deles representou um salto de qualidade nas edições, que se atualizaram.
Os volumes que saíam pela Brasiliense eram considerados antiquados. Muitos dos títulos infanto-juvenis tinham poucas ilustrações, a maioria em preto-e-branco. O papel tinha pouca atração táctil, o que costuma ser fatal quando ser quer se atrair leitores dessa faixa etária. Professores evitavam adotar as obras porque os volumes não chamavam a atenção das crianças.
Isso mudou com as novas edições, mas é a primeira vez que alguns de seus principais trabalhos são reunidos num só produto. Chance também para perceber melhor alguns pioneirismos de Lobato e que viriam a mudar radicalmente a forma de se fazer literatura infanto-juvenil no País. Gerações de escritores brasileiros do gênero beberam em sua fonte.Ele foi o primeiro, por exemplo, a perceber a importância do tema da ecologia para uma literatura que seria consumida por crianças e adolescentes. Em livros como A Reforma da Natureza, Lobato mostra, com magia e imaginação, as consequências que podem advir da exploração irracional dos recursos naturais.
O tratamento dispensado aos personagens negros dos livros, como Tia Nastácia e Tio Barnabé, é considerado por algunscríticos do autor como racista. Mas o fato é que Lobato incluiu o negro nas narrativas infantis, com papéis de destaque, o que não era costumeiro. Emília também é uma personagem anárquica em muitos sentidos, que contesta ordens e batalha por uma certa alteridade da infância. Pontos que ainda hoje suscitam discussões.
Explicação ou banimento?
Ame-o ou odeio-o. E haja amor e ódio. Monteiro Lobato sempre foi uma figura controvertida, conhecido por defender seus pontos de vista de forma apaixonada. Esse parece também ser o tom dos debates a respeito de sua obra, a adulta e a infanto-juvenil. Recentemente, o título Caçadas de Pedrinho, um dos volumes da saga do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o conjunto de obras mais influente da literatura para crianças e adolescentes no Brasil, foi alvo de críticas quanto ao seu possível conteúdo racista.
O tratamento dado a Tia Nastácia, a empregada negra de Vovó Benta, foi considerado pejorativo. Isso motivou pedidos para que a obra fosse excluída da lista de livros adquiridos pelo governo federal para distribuição gratuita aos alunos da rede pública de ensino.
A medida gerou muita polêmica. Entidades do movimento negro e autoridades do governo federal, ligadas ao Ministério da Igualdade Racial, se pronunciaram a favor do veto à obra de Lobato. Por outro lado, especialistas em literatura e escritores infanto-juvenis se mostraram preocupados e indignados com a possibilidade de o livro ser barrado nas salas de aula.
O assunto foi tema de reuniões no Ministério da Educação e no Conselho Federal de Educação. Um parecer foi publicado recomendando a manutenção da obra na lista dos livros didáticos, mas com a possível inclusão de uma advertência explicativa sobre o emprego de termos racistas e a recomendação de que professores e mediadores de leitura debatam o contexto histórico do tema em Monteiro Lobato.
A solução parece ter desagradado a todos. Movimentos negros já se manifestaram contra a concessão dada ao livro e há quem pregue a retirada de Monteiro Lobato das salas de aula do ensino fundamental (veja texto nesta página). Os que defendem o escritor acreditam que o livro de Lobato está sofrendo censura.
"O mínimo que posso dizer é que as pessoas do Conselho que tomaram essa decisão não leram Lobato", queixa-se a professora Vera Tietzmann, da UFG, especializada na produção do autor. "Quando fiquei sabendo que queriam proibir Caçadas de Pedrinho, até achei que fosse o Ibama que tinha reclamado, já que no livro há a cena da caçada da onça, em que o animal é morto."
Contexto
Vera admite que há elementos racistas na produção do escritor, mas que eles devem ser debatidos levando-se em consideração o contexto em que a obra foi escrita. "Lobato nasceu no final do século 19, era neto de um barão do café, um latifundiário em cuja fazenda a mão-de-obra foi, durante muito tempo, predominantemente escrava. Na época em que escreveu, aqueles comentários eram tidos como normais."
Mesmo com todas essas ponderações, Vera vê exagero nas acusações de racismo que pesam sobre Lobato. "Tia Nastácia é tratada com respeito. Sua relação com Vovó Benta é mais de amizade que de trabalho. Ela sempre acompanha as crianças nas viagens, não é discriminada de forma alguma."
Vera Tietzmann explica que Tia Nastácia costuma ser agredida por Emília, boneca de pano que ela própria costurou a partir de retalhos de uma saia velha. "A relação das duas é de mãe e filha e, como toda relação dessa natureza, muitas vezes é conflituosa. Narizinho e Pedrinho, as crianças de verdade da história, nunca ofendem Tia Nastácia. A Emília não deve ser tomada como um modelo de comportamento para as crianças."
Para ela, esse tipo de avaliação sobre o livro de Lobato mostra deficiências. "Faltam conhecimento e bom senso para contextualizar a história. Essa censura desqualifica a capacidade de interpretação de quem lê e de mediação de leitura por parte dos professores. É achar que todos são imbecis."
Censura
Maria Luiza Bretas Vasconcelos, coordenadora do Ensino Fundamental da Secretaria Estadual da Educação, também não poupa críticas à ideia de barrar Monteiro Lobato sob a acusação de racismo. "Não podemos esquecer o momento histórico em que ele escreveu. Ele foi criado por mucamas e nasceu quando a Lei Áurea não tinha sido assinada." Ela não percebe racismo nas histórias. "Tia Nastácia e Tio Barnabé detêm enorme conhecimento popular, da natureza. É um equilíbrio ao conhecimento enciclopédico e livresco de personagens como Visconde de Sabugosa e Vovó Benta. Além disso, temos de levar em conta que a literatura de Lobato é uma arte e como tal não pode estar submetida a nenhum tipo de censura."
Com doutorado em Letras, Maria Luiza pontua que os termos empregados por Monteiro Lobato e que hoje são considerados pejorativos eram comuns em sua época e que eles não significam algo além do que as palavras atuais designam. "Falar negro ou preto, que hoje não é usado, era o mesmo que falar afro-descendente atualmente." Para ela, qualquer proibição nessa seara é temerária e preocupante. "Monteiro Lobato é um divisor de águas, o principal escritor de nossa literatura infanto-juvenil. Daqui a pouco haverá proibições também para Capitães da Areia, de Jorge Amado, ou O Abraço, de Lygia Bojunga, porque são livros que falam de drogas e estupro. A literatura deve suscitar discussões e não proibições."
Ele é um clássico do racismo', diz militante do movimento negro
Militante de movimentos negros há mais de 30 anos, ex-editor de publicações sobre o assunto e com formação em Letras, o professor da UnB Edson Lopes Cardoso é contundente em sua avaliação da obra de Monteiro Lobato. "Ele é um clássico do racismo. A obra de Lobato está cheia de manifestações racistas. Nas correspondências, no contos, no romance", afirma.
Doutorando em Educação pela Universidade de Brasília e titular da disciplina Pensamento Negro Contemporâneo, Edson se exalta ao defender seu ponto de vista. "Em 1928, Lobato usa, no livro O Presidente Negro, o termo Solução Final para a questão do negro. Hitler usaria esse termo depois para exterminar os judeus."
Para Edson, os livros de Lobato trazem ofensas à dignidade da pessoa negra. "A sociedade aceita que um sabugo de milho consiga falar corretamente e que um negro não fale duas palavras corretas. Lobato formou uma geração de leitores com esse pensamento." Edson defende que os livros de Lobato não sejam aplicados ao ensino fundamental.
"Há décadas não se lê Lobato na escola. Eu não acho importante ler Monteiro Lobato para as crianças. Ele é um escritor racista." Em sua opinião, o autor deveria ser abordado a partir do ensino médio. "Lobato está situado no pré-modernismo e modernismo. Deveria ser estudado com autores do período, como Oswald e Mário de Andrade."
Disputa de mercado
Sobre a polêmica em torno do eventual veto a obras de Lobato nos programas de distribuição de livros didáticos, Edson argumenta que há bons motivos para barrar os livros. "Não é possível que dinheiro público seja usado para financiar a circulação de uma obra racista nas escolas públicas. Existe uma lei que impede que livros que atentem contra a dignidade humana sejam adotados pelas escolas. Não é censura. O livro continuará na livraria e quem quiser que o compre."
Em sua visão, há uma disputa de mercado por trás da discussão. "A Globo está de olho no mercado do livro didático", acusa, referindo-se ao fato de as reedições de Lobato estarem saindo pela Editora Globo.
Edson ataca o parecer do Conselho Nacional de Educação, que propôs a inclusão de uma advertência nas obras de Lobato chamando a atenção para o contexto histórico em que os livros foram escritos, explicando as razões de termos pejorativos em relação aos negros.
"O parecer do MEC é covarde. Sou contra essa advertência. O livro é o livro. O racismo estrutura toda a obra Caçadas de Pedrinho. Não existe outra maneira de ler o livro. Já existe uma literatura muito mais moderna, de autores nacionais e estrangeiros, que pode ser usada para discutir a questão do racismo com as crianças."
Quando questionado se, de fato, acreditava que um autor clássico da literatura infanto-juvenil brasileira deveria ser abolido do ensino fundamental público, Edson se irritou. "Você só se preocupa com o talento de Lobato e não com a dignidade da pessoa negra. Você como jornalista não tem a capacidade de ler Lobato. Você não leu Lobato!", afiançou, mesmo com o repórter garantindo que, sim, lera Lobato. Lera Lobato assim como milhares de outras pessoas de várias gerações e praticamente todos os escritores nacionais que escrevem para crianças e cujas obras são adotadas por escolas públicas e privadas há décadas.
As reinações de Lobato
Ziraldo leu. Ana Maria Machado leu. Lygia Bojunga leu. Pedro Bandeira leu. Marina Colassanti leu. Ruth Rocha leu. Bartolomeu Campos de Queiróz leu. Eu li. Você também deve ter lido. Poucos autores no Brasil foram tão lidos quanto Monteiro Lobato e talvez nenhum outro tenha semeado tanta influência quanto ele.
Na linguagem, na temática das histórias, na inclusão de elementos antes desprezados pela literatura infanto-juvenil no Brasil, Lobato criou uma outra tradição de produção literária no gênero, mais diversificada, autônoma em relação aos contos de origem nórdica ou das lendas europeias. Houve a aposta em um imaginário nacional para falar com o público daqui.
Esse tipo de iniciativa ilustra bem a personalidade de Lobato, em que sempre conviveu genialidade, destemor e, não raro, certa rispidez. Esse último traço ficou bem claro no polêmico artigo Paranoia ou Mistificação, de 1917, em que ele simplesmente detonou o trabalho da artista plástica Anita Malfati, que viria a ser uma das referências maiores da Semana de Arte de 1922.
Ela chegou a cogitar parar de pintar depois de ler o texto de Lobato. Em outra ocasião, brigou pelos jornais com os também modernistas Oswald de Andrade e Mario de Andrade, rompendo uma longa amizade com os dois que só seria reestabelecida na década de 1930.
Ele também se envolveu em debates nacionais, escrevendo e distribuindo uma carta em que exigia que o então presidente Getúlio Vargas mudasse sua política sobre os recursos naturais do País. Lobato era um nacionalista declarado, idealizador da campanha O Petróleo é Nosso, e por ter exagerado na linguagem, acabou preso, em 1931. Em 1941, Getúlio voltaria a mandar deter o escritor por se considerar ofendido por suas opiniões. Lobato Nunca foi unanimidade, nem entre amigos próximos. O que ninguém contesta é que esse homem nascido em 1882 em Taubaté e que morreu em 1948 foi um autor inesquecível por suas obras e seu temperamento forte e contundente.
Obra adulta também causa polêmica
O debate sobre os elementos de racismo e eugenia em Monteiro Lobato não são novas. Com o autor ainda vivo, o tema veio à baila, principalmente em razão de sua obra adulta, em especial com os títulos Negrinha e O Presidente Negro, incluídos na caixa-coletânea que acaba de ser lançada.
No volume de contos Negrinha, lançado em 1920, Lobato cria uma personagem órfã, uma menina negra, que come o pão que o diabo amassou na mão de uma mulher branca, católica e tirana. Na história, há a denúncia da violência doméstica contra empregados, sobretudo negros, num tempo em que a escravidão ainda estava muito viva na memória do País e nas relações entre as pessoas.
Já O Presidente Negro é uma ficção científica nos moldes das de H.G. Wells, em que a sociedade racista e estratificada dos EUA, no futurista ano de 2228, está prestes a eleger seu um mandatário negro. Muitos fizeram paralelo da obra com a eleição de Barack Obama. O mote da obra abre, na verdade, muita discussão sobre a ideologia de Lobato, uma vez que, no livro, há o elogio à separação das etnias como instrumento para resolver problemas morais da sociedade. Ao mesmo tempo, Lobato é dúbio neste livro publicado em 1926, quando associa o branco à "crueldade fria".
Essa contradição de Lobato pode ser explicada pelas teses cientificistas que vigoraram naquele tempo e uma delas foi a da eugenia. No meio intelectual, não só no Brasil, essas ideias prosperaram e influenciaram muitos autores. O mesmo debate é feito, ainda hoje, sobre a produção de Euclides da Cunha.
O clássico Os Sertões traz ataques a negros e índios e critica a miscigenação, mas também reconhece as virtudes do sertanejo. Discussões semelhantes já foram levantadas quanto a textos de José de Alencar, Machado de Assis e Gilberto Freyre, para citar apenas alguns. ▩