Energia atômica
Energia atômica
A tecnologia perigosa
Cientistas garantem que matriz energética brasileira deve contemplar fonte nuclear, mas defendem revisão de projetos de segurança de reatores
Luana Borges
Uma situação limite. Apocalíptica. Desastre extremo e desesperador. São os adjetivos pelos quais o físico Arthur Otto, que trabalhou por mais de dez anos no programa nuclear do Exército brasileiro e que tem mestrado em engenharia nuclear pela Universidade de São Paulo (USP), descreveu o que está ocorrendo no Japão. Um terremoto, seguido de um tsunami, atingiu o país na sexta-feira, 11. Do epicentro do tremor (a 24,4 quilômetros abaixo do solo marítimo, no Oceano Pacífico, e a 130 quilômetros da costa japonesa), ondas gigantes chegaram ao continente em apenas cinco minutos, avançando a uma velocidade de 800 quilômetros por hora e chegando a 10 metros de altura. Ao desastre natural, que atingiu 8,9 pontos na escala Richter, seguiram-se os incidentes ocorridos nos seis reatores da usina nuclear de Fukushima, que apresentaram problemas em seus sistemas de refrigeração e chegaram a incendiar ou explodir.
Essas cenas do Japão, vistas pelas lentes da imprensa internacional, foram fílmicas. À maneira de produções do chamado cinema-catástrofe que narram aventuras épicas sobre o fim do mundo — como os filmes “O Dia Depois de Amanhã”, “Armagedon” ou o mais recente “2012” — o que se viu foram carros, casas, aviões e outros destroços serem levados por correntezas de lama. Na tela, em meio à água suja, feitos tecnológicos dos homens pareciam pequenos brinquedos. Como alcunhou Otto, apocalíptico. Opinião coincidente com a do comissário europeu de energia, o alemão Günther Oettinger. Na terça feira, 15, ele afirmou em uma Comissão do Parlamento europeu em Bruxelas: “Apocalipse é um termo particularmente bem escolhido”.
Contudo, o tom da inevitabilidade de um fim do mundo irremediável não deve tomar corpo. Se tomasse, não haveria necessidade de mais discussões. O fato é que o episódio do Japão põe à prova o modelo de produção energética baseado em fontes nucleares e acirra debates sobre a segurança das tecnologias para a produção de energia atômica. Ante o perigo radioativo que ameaça os japoneses, ante o esforço dos técnicos para resfriarem os reatores, evitando maior dispersão da radioatividade, e ante a torcida internacional para que a situação seja resolvida de forma breve, a discussão sobre a viabilidade, e os riscos, das usinas nucleares é hoje cultivada em escala global.
Nesse contexto, alguns países, como a Alemanha, já reviram medidas relativas ao funcionamento de seus parques energéticos. O país tinha anunciado que estenderia a vida útil de suas usinas nucleares. O ano de 2021 seria o prazo final para que elas parassem de funcionar. Entretanto, no ano passado, a chanceler alemã Angela Merkel prorrogou a data por mais 14 anos. Bastaram três dias após o susto nipônico (e mundial) para que a premiê suspendesse a prorrogação. Segundo ela, o país terá de repensar o seu programa nuclear. Enquanto readequações são feitas, os sete reatores mais antigos da Alemanha foram desativados. A ideia é rever seus sistemas de segurança. Merkel garantiu ainda, em um debate acirrado no Parlamento germânico convocado após a crise nuclear no Japão, na quinta-feira, 17, que seu governo diversificará a matriz energética com fontes renováveis.
Por sua vez, a Suíça, que tem quatro usinas nucleares que produzem cerca de 40% da energia no país, anunciou que vai endurecer a regulamentação sobre os padrões de segurança de seus reatores. Já a Rússia promete continuar investindo no crescimento dessa fonte de energia. Das 19 usinas nucleares que estavam sendo construídas em janeiro na Europa, 11 estão em território russo. Ao todo, o continente conta com 195 usinas nucleares em operação. Já em um contexto global, 440 usinas estão funcionando, de acordo com informações da Eletronuclear, empresa subsidiária da Eletrobrás e responsável pela energia atômica tupiniquim.
Da usina de Belo Monte à de Angra 3
No palco da política brasileira, não há histórico de forte militância ambientalista contrária à energia atômica, como há na França, nação que tem cerca de 75% de sua energia vinda de fontes radioativas. Ora, esse tipo de produção energética ainda tem pouca evidência no cenário nacional. As usinas de Angra I e Angra II fornecem ao Sistema Interligado Nacional (SIN) entre 2% e 3% da energia do país, apenas. Aos verdes, portanto, estão na ordem do dia outras preocupações.
Como a matriz energética patropi é fundamentalmente baseada na hidroeletricidade, é mais natural eles se dedicarem aos debates sobre a instalação da usina hidroelétrica de Belo Monte. A obra, prevista para entrar em funcionamento em 2015, tem um custo estimado de R$ 19 bilhões e é o segundo projeto mais oneroso do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de Lula e Dilma Rousseff (PT), atrás apenas de um trem-bala orçado em R$ 34 bilhões.
Quanto a Belo Monte, a crítica maior diz respeito ao fato de que a usina provocaria a interrupção de cerca de 100 quilômetros do Rio Xingu, no Pará. Assim, com vazão reduzida, a oferta de água para ribeirinhos, pescadores, povos indígenas e cidades ficaria seriamente comprometida. Os críticos argumentam ainda que o rio paraense sofre com a seca, o que faria com que a usina fosse ineficiente em termos de produção energética. Segundo eles, a obra jamais chegaria à sua capacidade instalada de geração, que é de 11.233 megawatts (MW).
Mas se apenas Belo Monte era suficiente para enriquecer a pauta ambientalista de reivindicações, o apocalipse now visto nas últimas semanas traz à tona — aos verdes e à sociedade como um todo — o debate sobre o funcionamento seguro das usinas nucleares e sobre a ampliação desse tipo de modelo no País. O Programa Nuclear Brasileiro prevê a construção, até 2030, de quatro a oito reatores nucleares, cada um com uma potência instalada de 1.000 MW. A previsão é de que os dois primeiros sejam construídos no Nordeste e os outros em regiões sudestinas. Se há motivos para recuar nos planos de expansão?
Para o diretor de segurança e radioproteção da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), Laércio Antônio Vinhas, o acidente no Japão não deve servir à suspensão de novos avanços na área e, sim, deve alertar em relação à segurança dos reatores. “A indústria nuclear procura tirar lições de tudo. Juntamente com as fábricas de avião, criamos o conceito de garantia de qualidade. Antes, tínhamos apenas o controle de qualidade. Depois do acidente no Japão, os projetos de cada reator serão revistos. Faremos o possível para incorporar elementos que agreguem segurança e que diminuam a possibilidade de problemas de refrigeração”, pondera Vinhas, cientista que carrega histórias. Ele foi chamado, por sua experiência, para trabalhar na descontaminação das áreas acometidas pelo acidente radiológico com o césio 137 em Goiânia. À época, as autoridades, totalmente despreparadas para lidar com o caso, recorreram a renomes da ciência.
O físico Arthur Otto também coaduna com essa ideia. Segundo ele, não há motivos para a execração da energia nuclear, pois o caso japonês foi exemplo extremo que põe à prova quaisquer espécies de sistemas de segurança. “A energia nuclear é segura e controlável. A não ser em situações limites como a que ocorreu ali. Os planos de segurança das usinas consideram que ocorrerão catástrofes naturais até determinado nível e os reatores são capazes de resistir a esses desastres. Mas de repente a natureza mostra outras facetas e a situação foge do controle”, diz. Segundo ele, Angra 1 e Angra 2 têm planos que preveem tragédias como a queda de aviões ou terremotos em diversos níveis. “Nossas usinas teriam condições de enfrentar problemas desse tipo. Para que uma planta seja construída, tudo é previsto. Mas as previsões são para determinado nível. Se essa energia não fosse confiável, o Japão, país que mais sofreu seus efeitos maléficos com a bomba de Hiroshima, não investiria nessa fonte. Mesmo diante da tragédia, não há como excomungar esse tipo de produção energética. A verdade é que toda tecnologia tem seus prós e contras”, ressalta o físico.
Renascença
Já o cientista e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Fábio Braghin, que é físico, alerta que, como Angra dos Reis é uma cidade que recebe grande número de turistas, a população que transita nas proximidades das usinas pode estar carente de informação. “Entre os locais, existe certo nível de conhecimento sobre como agir em casos de emergência. Mas as pessoas que chegam à cidade, nas férias, não têm acesso a essas informações. Aí fica mais difícil”, supõe Braghin, que se doutorou na área de física nuclear em uma universidade francesa.
Entre os cientistas consultados pela reportagem do Jornal Opção, a opinião foi, portanto, coincidente: os incidentes com os reatores japoneses devem servir para que o sistema seja vistoriado e aprimorado em termos de segurança, mas não para que a energia nuclear seja suprimida da matriz energética brasileira. Contudo, em um país de rios caudalosos e perenes (essenciais à hidroeletricidade), com potencial eólico elevado, com fontes alternativas de produção energética como a biomassa cana-de-açúcar, pensar em uma energia de alto risco parece impertinente. Ante os perigos, soa controverso investir em Angra 3.
A construção da terceira usina da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, em Angra dos Reis (RJ), iniciou-se em 1984 e foi paralisada em 1986. Entretanto, os tempos são outros. O conceito de segurança energética entrou em voga após as crises — como o apagão de 2001 na era FHC e de outros já nos governos do PT — de um sistema elétrico não planejado, baseado em apenas uma única fonte de energia, dependente das chuvas. Desse conceito de segurança energética, surgiu a proposta de diversificação da matriz. Além do mais, fontes não emissoras de gases estufa, como a nuclear, são privilegiadas devido aos problemas referentes ao aquecimento global. Isso significou, à expansão da energia atômica, renascença.
As obras de Angra 3 foram oficialmente retomadas em junho do ano passado e contaram com financiamento de R$ 6,1 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). De acordo com informações da Eletronuclear, o recurso do BNDES, liberado em dezembro, corresponde a 58,6% do investimento total do projeto e ainda serão necessários quase R$ 10 bilhões para a conclusão da obra, que deve demorar cerca de seis anos. A previsão é de que a usina gere energia equivalente a um terço do consumo do Estado do Rio de Janeiro (10,9 milhões de MW/hora por ano).
Reorientação
Entretanto, a crise nuclear nipônica pode dar lugar, ao invés da renascença, ao refreamento das políticas na área atômica. Pode indicar outra reorientação na mudança de paradigmas. No que se refere à terceira usina nuclear, o ex-governador de Goiás (1975-1979) Irapuan Costa Junior pondera que ela é desnecessária quando se considera somente o abastecimento energético. “Para complementar a matriz energética brasileira, os investimentos em Angra 3 realmente não são necessários. Investir nela é válido para a aquisição de know how em termos de segurança nuclear. Saber como se constrói e como se opera é importante. Devemos aprender a tecnologia porque se for necessário, amanhã ou depois, a gente sabe como fazer. Com as reservas de urânio que o País tem, nós não podemos deixar de lado essa fonte energética”, pondera Irapuan, que sempre esteve a par das discussões sobre o Programa Nuclear do Brasil. De acordo com informações da CNEN, os solos tupiniquins carregam 309 mil toneladas de urânio, que representam a sexta maior reserva mundial do minério e dariam para abastecer, por 520 anos, as usinas de Angra 1, 2 e 3.
Falas como “se amanhã ou depois precisarmos dessa energia” referem-se ao conceito de segurança da matriz nacional. O físico Arthur Otto tece também seu discurso por esse viés. “Pelo nível de desenvolvimento do país, as hidrelétricas serão insuficientes em pouco tempo. A demanda só cresce”, diz. Mas cabe perguntar se os investimentos em energia eólica ou solar não deveriam vir antes dos aportes destinados à produção nuclear.
“Esses dois tipos de matrizes ainda vão demandar muitos estudos e pesquisas. Problemas técnicos dessas fontes precisam ser equacionados. Não são energias de uso imediato. Não se constroem usinas de energia solar. Ela é usada apenas em uma casa. Ainda é insuficiente. Tem de se pesquisar muito mais. Entretanto, quanto à energia nuclear, ela já está aí. Conhecemos a tecnologia. O primeiro reator é da década de 1940. São 70 anos de investigação científica. Com o desenvolvimento tecnológico, creio que a Ciência conseguirá resolver esses problemas da radioatividade. A ciência nuclear ainda é nova. Tende a evoluir e superar todos os obstáculos apresentados hoje”, argumenta Otto.
Apesar das falas aguerridas dos cientistas, a fragilidade tecnológica frente a catástrofes naturais traduz espanto. O Greenpeace pediu ao governo de Dilma Rousseff a suspensão da construção de Angra 3 no país. Os protestos ocorreram na sexta-feira, 18. Os ativistas subiram a rampa do Planalto vestidos com capas de proteção e máscaras. Faixas em punho onde se viam letras taxativas: a energia que mata. Por outra vertente, o diretor da CNEN, Laércio Vinhas, explica que a segurança dos reatores do Brasil é apropriada. Segundo ele, se ocorrer uma falha no sistema de resfriamento, como a que ocorreu no Japão, existem quatro geradores a diesel capazes de resfriar os reatores. “Caso falte energia externa, há quatro sistemas de geração, sendo que só se precisa de um”.
Não houve, em Fukushima, uma explosão nuclear, aquela pela qual há bombardeio desenfreado de nêutrons no núcleo atômico e divisão desordenada dos átomos de urânio. Até o momento, as explosões nos reatores foram químicas: o hidrogênio da água superaquecida reagiu com o oxigênio do ar e explodiu. O vapor da água saindo da usina, carregando partículas radioativas, fez a comunidade internacional se lembrar de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. Houve medo. Tão natural. O medo da vulnerabilidade.