A controversia da titulação

Portal Amanhã, 18 de fevereiro de 2011


A controvérsia da titulação

Afinal, o que o brasil ganha (ou perde) com a lei que obriga as universidades a reservar um terço de suas vagas a professores que ostentam diploma de mestre ou doutor?

Cleidi Pereira

Ninguém reclamou quando, há 14 anos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determinou que as universidades tivessem pelo menos um terço do seu corpo docente titulado como mestre ou doutor. Afinal, o o objetivo parecia muito simples e nobre: melhorar o nível do ensino acadêmico e criar uma massa crítica que impulsionasse a pesquisa científica no país. Mas não foi exatamente isso que acabou acontecendo. Hoje, passada mais de uma década, a exigência ainda é motivo para controvérsias.

Recentemente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) também decidiu que, para conquistar ou manter o status de “universidade”, as instituições têm até 2016 para oferecer, no mínimo, quatro cursos de mestrado e dois de doutorado. Enquanto alguns comemoram os avanços perpretados por essas medidas, outros reclamam das limitações, além da enxurrada de profissionais titulados no mercado – em 2009, um concurso para garis atraiu 22 mestres e 45 doutores no Rio de Janeiro.

Na visão do cientista político Alexandre Barros, diretor-gerente da consultoria Early Warning Políticas Públicas e Risco Político, de Brasília, o requisito é burocrático e contraproducente – na medida em que impede profissionais talentosos, com boa bagagem de mercado, de compartilhar seus conhecimentos com a academia. “No Brasil, Bill Gates e Steven Jobs não teriam futuro algum como professores universitários, pois não possuem mestrado ou doutorado”, exemplifica.

Barros acredita que a pré-condição dá origem a uma educação vista pelo retrovisor, que prejudica principalmente a inovação. Segundo ele, a evolução brasileira em ciência e tecnologia é lenta e a avaliação de projetos, ultrapassada. “A pesquisa é apresentada para uma pessoa que se formou há 30 anos e passou a maior parte de sua vida ensinando o que aprendeu”, diz. Para ele, a burocracia também se encontra na forma como são avaliados os profissionais da educação. “Os professores passam 90% de seu tempo escrevendo artigos para revistas que ninguém vai ler, e os outros 10% são gastos na atualização do currículo”, ironiza.

Dados do Ministério da Ciência e Tecnologia revelam que, há 40 anos, o Brasil formava pouquíssimos doutores. Hoje, já responde pela produção de 2,6% da ciência do mundo e ganha, todos os anos, aproximadamente 12 mil doutores e 40 mil mestres. Logo, a tendência é de que as universidades passem a contar com mais doutores em seus quadros ao natural. Os próprios estabelecimentos vinculados à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) têm dado prioridade a esse perfil em seus processos de contratação e concursos. As exceções ocorrem em áreas em que há escassez de profissionais doutorados – como na Medicina. Entretanto, o presidente da Andifes, Edward Madureira Brasil, acredita que a requisição não impossibilita a contratação de mestres ou especialistas nos demais estabelecimentos de ensino. Reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), ele ressalta que a norma exige apenas um percentual mínimo para que se obtenha o título de universidade. “A academia precisa de pessoas capazes de produzir novos conhecimentos. Quem habilita para isso são os cursos de pós-graduação stricto sensu”, diz.

Para o secretário-geral do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Márcio Antônio de Oliveira, elevar o grau de qualificação dos professores universitários é o principal argumento favorável à medida. O cumprimento das funções essenciais de uma universidade – ensino, pesquisa e extensão – depende da formação voltada para a vida acadêmica, diz ele. “É uma exigência saudável quando feita dentro dos critérios que levam ao desenvolvimento dos interesses da faculdade, com projetos que condizem com as necessidades da população brasileira”, reflete. Por isso, na Andes, a cobrança por mais verba para o aprimoramento dos quadros em instituições públicas é constante. “Em quatro décadas, foi formado um grande número de mestres e doutores, que hoje fazem a academia e a ciência. Houve uma evolução e isso não pode ser negado”, defende.

Liberdade de escolha

Representante do ensino acadêmico privado, o reitor do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), de Porto Alegre, Flávio D’Almeida Reis, defende a possibilidade de mesclar nas diversas disciplinas os títulos acadêmicos com a experiência profissional. Comandante de um estabelecimento que almeja o título oficial de “universidade”, ele define a exigência de mestrado e doutorado como importante e necessária, mas faz uma ressalva: “Há situações em que a pessoa com experiência de mercado, mesmo não tendo todo o conteúdo pedagógico, tem ensinamentos importantes para transmitir.” D’Almeida acredita que a própria instituição é que deve ter a prerrogativa de optar por profissionais de mercado para ministrar disciplinas mais práticas. “Isso, pela legislação atual, não está muito claro”, reclama o retor da UniRitter, que em novembro se tornou integrante da Laureate International Universities, maior rede de instituições de ensino superior do mundo.

Há quem diga, ainda, que a exigência do mestrado torna o negócio das universidades privadas inviável. “Para um estabelecimento de ensino que depende de mensalidades e número de alunos, é uma situação incompatível. A contratação de doutores exige maior investimento financeiro”, pensa Alexandre Barros. Já o secretário-geral do Andes analisa que as universidades públicas são responsáveis por cerca de 90% da produção científica e tecnológica nacional justamente porque não há cobrança de um padrão nas particulares. “Muitas não pesquisam, apenas formam para colocar no mercado, não há linha de pesquisa nem dedicação exclusiva. Universidade que não tem linha acadêmica não é uma universidade”, afirma.

"A obrigatoriedade de mestrado gera uma controvérsia: até que ponto um bom pesquisador é também um bom professor?"

Quando a LDB passou a vigorar, há pouco mais de uma década, exigindo a titulação mínima de mestre ou doutor para um terço do corpo docente, o escritor, linguista e pesquisador Aldo Bizzocchi avaliou que seria um equívoco obrigar as universidades, sobretudo as privadas, a investir em pesquisa. O que se viu, segundo ele, foi uma corrida de professores aos cursos de mestrado, já que ninguém queria perder o emprego. O problema é que a maioria dos programas stricto sensu forma bons pesquisadores, e não necessariamente bons professores. “Nem todo professor universitário tem vocação para a pesquisa, assim como nem todo o pesquisador sabe ensinar”, relata.

Bizzocchi reconhece que a regra gerou um grande avanço, mas pondera que a norma está longe de ser ideal. “Pela lógica capitalista, não é e nunca será ideal. Somente as universidades federais têm condições de cumpri-la, pois contam com o aporte de dinheiro público”, ressalta. O pesquisador ainda acredita que o Estado precisa ter coragem política para exigir que todas as universidades privadas produzam conhecimento em prol da sociedade. “Só assim, teremos no Brasil universidades realmente dignas desse nome.”