Jornal Opção - Vida moderna e coração doente
Por Luana Borges
Seis da tarde. Final de expediente de trabalho. Na última hora de luz solar, à medida que as pistas de caminhada ganham contornos escuros com a chegada da noite e se iluminam com as luzes artificiais dos postes, centenas de pessoas chegam ao Parque Sulivan Silvestre, ou Vaca Brava, para caminhar, pedalar ou correr. O parque, no Setor Bueno, região Sul de Goiânia, tem uma área total de 79,8 mil m² e abriga uma estação de ginástica, playground infantil, reserva ecológica, pista de cooper e um lago central. Ali, frequentam pessoas como a assistente administrativa Cinthia Marques de Oliveira, 36 anos, e o funcionário público Adriano Dias de Morais, 34. O casal pratica exercícios físicos no Vaca Brava há quase três anos, durante três vezes na semana. “Desde que casamos, buscamos esse ambiente.
Estamos tentando fazer exercícios com regularidade”, diz Adriano. Quando questionados sobre os motivos que os levaram a trocar, ao final do dia, os tailleurs e saltos ou as camisas e sapatos de trabalho por camisetas esportivas e tênis, Cinthia dá a resposta: “A prática de esporte dá mais disposição, melhora o sono, levanta a autoestima e ainda emagrece. No meu caso, eu parei de tomar remédio devido à atividade física. Estava com níveis elevados de triglicérides”.
Também conhecidos como triglicerídeos, os triglicérides são gorduras que advêm de carboidratos (açúcares e massas) e ficam armazenados nas células, formando o tecido adiposo. Compostos por uma molécula de glicerol e três partículas de ácidos graxos, eles têm como principal função a reserva calórica dos indivíduos, ou seja, atuam na estocagem de energia essencial ao corpo humano durante os períodos de privação de alimentos. Entretanto, o excesso de colesterol e de triglicerídeos no sangue — a dislipidemia, conforme linguajar médico — constitui-se um dos fatores de risco para a ocorrência de infartos. O fato é que, na vida moderna automatizada — ante a inércia do corpo frente aos computadores, televisões e videogames, ante os carrinhos de supermercados repletos de enlatados e as cantinas fast food lotadas — o problema que afligiu Cinthia, levando-a às sucessivas voltas em torno do lago Vaca Brava, é crescente.
Embora o Ministério da Saúde não tenha dados específicos sobre as parcelas da população que sofrem com o colesterol alto (com a taxa anormal de lipídios na corrente sanguínea), uma pesquisa divulgada pela Agência Brasil e feita por uma empresa de planos de saúde verificou que, entre os anos de 2004 e 2008, houve um aumento de 7,4% nos casos de dislipidemia do País. Em 2004, 18% dos brasileiros entre 20 e 49 anos tinham níveis alterados de colesterol de baixa densidade, o LDL, também chamado de colesterol ruim. Quatro anos mais tarde, 25,4% dos cidadãos do País estavam acometidos pelo problema. Para se ter uma ideia das taxas de crescimento, apenas entre as mulheres o índice saltou de 14,4% para 23,7%. Já entre a população masculina, a despeito de ela sofrer mais com o excesso de lipídios, as taxas cresceram em ritmo menos intenso: a porcentagem de homens brasileiros com teores elevados de LDL saltou de 21,8% para 26,4%.
O fato é que o excesso de triglicérides, problema que motivou Cinthia a dar as costas à vida sedentária, é apenas uma das facetas, talvez a menos prejudicial ao coração, desse aumento de “gorduras” no sangue. Além dos triglicerídeos, há também a elevação do nível de colesterol, tipo de gordura essencial à formação de membranas celulares, matéria-prima na produção de hormônios e, portanto, crucial à existência humana. Justamente por sua importância ao organismo, o fígado produz 70% do colesterol existente no corpo. Os outros 30% são obtidos na alimentação, devido à ingestão, sobretudo, de alimentos de origem animal. Verifica-se a essencialidade desse tipo de lipídio à vida. Mas de onde vem, então, a expressão colesterol ruim?
Ora, para que circule na corrente sanguínea e desempenhe suas funções, o colesterol tem de se ligar a uma molécula de gordura e proteína, essencial a seu transporte, conhecida como lipoproteína. Há dois tipos dessas moléculas: a LDL, uma proteína de baixa densidade (do inglês low density lipoprotein) que transporta o colesterol do fígado para os outros tecidos; e a HDL, partícula de alta densidade (do inglês high density lipoprotein) que devolve o colesterol ao fígado para que, enfim, ele seja eliminado.
Em meio à linguagem técnica das ciências biológicas, por vezes cansativa, vale simplificar: o HDL remove o excesso de colesterol nas artérias, trazendo-o de volta ao fígado para posterior eliminação. Já o LDL excessivo deposita-se nos vasos sanguíneos. Ali, com o passar do tempo, esse colesterol ruim — o grande vilão da história — pode formar placas duras de gorduras nas paredes das artérias. Essas placas, calcificadas, levam ao entupimento dos vasos e, consequentemente, às doenças arteriais como o infarto ou o derrame cerebral.
Má alimentação
Justamente por isso o descontrole das taxas de lipídios, decorrente da má alimentação e do sedentarismo da maior parte da população, é tão prejudicial à bomba de sangue do corpo humano. Mas o médico cardiologista e professor da Universidade Federal de Goiás Paulo César da Veiga Jardim explica que os cidadãos desconhecem esses malefícios. “Ainda não se entende que o colesterol alto pode levar a um problema cardíaco. Essa relação direta ainda não está associada à crença popular, ao anedotário, fundamentais a mudanças de atitude. Dessa forma, a pessoa não entende que ela tem de ter um cuidado eterno. Não entende que tem de usar o remédio durante toda a vida, não podendo parar o tratamento”, diz o médico, que é coordenador da Liga de Hipertensão Arterial do Hospital das Clínicas da UFG e conduz o programa de pós-graduação em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina da universidade.
Mas ao observar o Parque Vaca Brava se adensando de gentes, pôr-do-sol da tarde de quinta-feira, 31 de março, a ideia que vem à cabeça da repórter é de que o combate ao colesterol alto e os cuidados com o coração, por meio da prática de exercícios físicos, estão efetivamente inseridos no hábito popular. O barman e tradutor José Antônio Agapito caminha ali há um mês, desde que retornou ao Brasil após 11 anos de residência na Europa. Ele atribui seu excesso de peso à vida que levava fora do País. “Eu não tenho diabete. O problema é mesmo a obesidade. O coração às vezes pode não suportar. No Brasil, eu trabalho à noite e não bebo. A primeira determinação no pub daqui foi essa. Mas na Irlanda não tinha isso. Há também outro fator: lá as pessoas fazem menos exercícios e têm um hábito de vida pior, devido ao clima frio. Agora tenho 40 anos. A certa idade, vemos que há de se perder peso. Por causa do coração. E por causa da estética”, diz.
Entretanto, basta checar para ver que o parque lotado, de fato, engana. De acordo com a Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), sistema de apuração do Ministério da Saúde, o porcentual de brasileiros obesos cresceu, entre 2006 e 2009, de 11,4% para 13,9%. Em Goiânia, a Vigitel apurou que apenas 17% de homens e mulheres, maiores de 18 anos, fazem exercícios físicos regularmente. A minoria é que circunda os lagos de regiões nobres.
Além disso, a capital conta com quase 46% de sua população com alguma espécie de sobrepeso. Dentre eles, há cerca de 15% de obesos. “O mundo favorece uma vida de menos movimento. Na cidade há uma briga insana do veículo com o pedestre. O veículo motorizado é privilegiado. Os passeios são cada vez menores, as ruas cada vez maiores. A cidade é feita para carros. Eleva-se o automóvel individual e rebaixa-se o coletivo. Não se privilegia nada que não seja o motor. Isso quer dizer que as situações de vida favorecem o sedentarismo. A população é menos ativa, seja no ambiente profissional, seja em suas atividades de lazer. O controle remoto é um exemplo disso”, pondera o cardiologista Veiga Jardim.
Outros vilões
De acordo com o médico, associada ao colesterol alto, ao sedentarismo e à obesidade — fatores de risco ao músculo cardíaco — está a hipertensão arterial. Ela ocorre quando a pressão que o sangue faz nas paredes das artérias, ao se movimentar, é muito forte, ficando acima de 14 por 9, ou seja, acima de 140/90 mmHg (milímetros de mercúrio). Esse número mede a força sistólica, ou seja, aquela que o coração usa para bombear o sangue, e a força diastólica, isto é, a resistência que as artérias oferecem ao caminho da corrente sanguínea.
O problema se dá quando há uma redução do calibre da artéria. Ocorre que, com o estreitamento arterial, há um consequente aumento da resistência à passagem do sangue. Em contrapartida, há também a elevação da força que o coração usará para bombeá-lo e empurrá-lo por dentro dessas artérias estreitadas. Ante a situação, descrita por muitos como “morte silenciosa”, devido à ausência de sintomas, o risco de infarto do miocárdio é expressivo. Entre os brasileiros, segundo estimativa feita pelo Ministério da Saúde, existem 33 milhões de hipertensos. Nesse contexto, é preocupante saber que apenas 20% desse total, de acordo com Veiga Jardim, têm sua pressão controlada.
O cardiologista explica também que o consumo excessivo de sal eleva a pressão arterial. Segundo ele, para a saúde cardíaca não se pode ultrapassar uma ingestão de seis gramas de cloreto de sódio ao dia. “Não podemos esquecer que esse valor não se refere apenas ao sal de cozinha, ou seja, àquele que adicionamos à comida. Há cloreto de sódio nos alimentos industrializados. E os carrinhos de supermercado estão repletos de latas, de vidros e de tira-gostos. A população do Centro-Oeste consome uma média de 13 gramas de sal ao dia, o dobro do necessário. Em alguns locais do Brasil as pessoas chegam a comer três vezes mais.”
Estresse (níveis elevados de esgotamento físico e mental oriundos do ambiente de trabalho já contam até com nome específico, a chamada Síndrome de Burnout), diabetes e tabagismo, além de fatores hereditários, também estão na lista de vilões para o coração. O estresse diminui o sono, dificulta uma alimentação saudável, pode elevar a pressão arterial, descontrolar as taxas de colesterol e levar, por fim, a malefícios que afetam a bomba sanguínea. Já os subprodutos da fumaça do cigarro danificam o revestimento das artérias, promovendo o acúmulo de placas e o consequente bloqueio da passagem sanguínea. A diabete também traz problemas vasculares e, por isso, é elemento complicador.
À maneira de Dom João VI
Por esses fatores, todos estimulados em demasia nos ambientes citadinos modernos — com seus ruídos excessivos, seus engarrafamentos colossais, as luzes de neon que não deixam dormir cedo, o acúmulo cotidiano de informações, preocupações e cobranças —, o cardiologista Paulo Cesar da Veiga Jardim ressalta algumas mudanças na cultura médica. “Antes, quando uma mulher jovem chegava ao hospital com dor no peito, não considerávamos, a priori, a possibilidade de infarto. Isso porque as mulheres que levam uma vida saudável estão protegidas, devido a seus hormônios, das doenças cardiovasculares. Entretanto, hoje não é assim. Pelo tipo de vida que escolhemos, por essa cultura urbana que pouco prioriza a saúde, o infarto não escolhe mais nem sexo, nem idade.”
O fato é que, enquanto mesa farta e muitos carros na garagem forem paradigmas de status social e de ostentação, a saúde do músculo cardíaco ficará em segundo plano. Em exemplo caricato, vale lembrar a anedota de um dos reis mais ridicularizados da história de Portugal e Brasil: Dom João VI, estigmatizado como um rei bom de garfo que carregava nos bolsos coxinhas de frango. A despeito do caráter mítico e irreal da história, a intenção aqui é apenas ilustrar os excessos à mesa, ainda tão presentes nas cortes contemporâneas.
“Há um problema cultural em nossa sociedade. Associa-se muito a comida e o carro à melhoria de vida. Comida traduz status e ascensão social. Quando se pensa em lazer, em prazer ou em luxo, logo aparecem os nomes comida e bebida. Não há nenhuma espécie de contrapropaganda nesse sentido. Em quase todos os comerciais, o alimento é muito calórico, muito farto e muito gorduroso. Assim, a prática da boa alimentação e o cuidado com o coração ainda não são correntes”, alerta o médico. Aos Joões Sextos modernos, agora também sedentários motorizados, fica o recado.
http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/vida-moderna-e-coracao-doente