Jogos de sedução

Jogos de sedução

Mostra Sexo e Poder, em cartaz no Cine UFG, apresenta pela ótica do cinema as diversas possibilidades da sexualidade humana

Rute Guedes

A beleza fria de Catherine Deneuve como uma prostituta de meio período, a escatologia de um grupo de fascistas violentando adolescentes ou um casal de classe média em crise discutindo a relação. Os temas sexo e poder, que norteiam a nova mostra de filmes inaugurada esta semana no Cine UFG, abrangem as diversas, para não dizer infinitas, possibilidades da sexualidade e das relações humanas - sob o olhar caleidoscópico da sétima arte.

Produções clássicas como A Bela da Tarde (1967), no qual o genial Luis Buñuel filma a diva Catherine Deneuve como uma dona de casa infeliz, ou olhares mais contemporâneos, caso de XXY (2007), filme argentino sobre um adolescente hermafrodita, dividem espaço com a proposta provocativa de Saló (1975), um dos filmes mais polêmicos e politizados do italiano Paolo Pasolini. Em contraposição à estética por vezes repulsiva deste último, entra em cena o sedutor jogo de luz, sombras e caligrafias de Livro de Cabeceira (1996), com Ewan MacGregor e direção de Peter Greenaway.

A irreverência pode ser a arma contra o preconceito e decretos, como lembra o documentário Dzi Croquettes (2010), sobre o grupo de teatro homônimo que desafiou a ditadura e a censura no Brasil nos anos 70. Calígula é um filme de 1979 dirigido por Tinto Brass, e é inspirado na história de um dos imperadores romanos considerados como um dos mais devassos de todos, segundo os padrões cristãos. Escrito por um dos mestres da literatura norte-americana, Gore Vidal, o longa teve entre seus financiadores uma revista erótica dos EUA. Nos limites entre o erótico e o pornográfico, o filme sintetiza a relação sexo e poder em seus aspectos mais extremos, utilizando a linguagem do cinema como instrumento de sedução.

O Cine UFG e o grupo Ser-Tão, em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social, Comunicação e Sociologia, são os organizadores da mostra, que permanece em cartaz até o dia 20. Estão programados debates amanhã e no dia 13.

 

Programação

Mostra Cine UFG (Universidade Federal de Goiás, Câmpus Samambaia)

Hoje

12h - Eu Sei que Vou te Amar

17h30 - O Último Tango em Paris

Amanhã

12h - Calígula

17h30- Dzi Croquetes (debate)

Quinta-feira

12h - O Império dos Sentidos

17h30- Eu Sei Que Vou Te Amar

Sexta-feira

12 -Livro de Cabeceira

17h30 - O Império dos Sentidos

Segunda-feira (dia 11)

12h - Saló

17h30 - Livro de Cabeceira

Terça-feira (dia 12)

12h - Shortbus

17h30 - O Último Tango em Paris

Quarta-feira (dia13)

12h - A Bela da Tarde

17h30 - O Império dos Sentidos (debate)

Quinta-feira (dia 14)

12h - XXY

17h30 - Saló

Sexta-feira (dia 15)

12h -Desejo e Perigo

17h30 - Dzi Croquetes

Segunda-feira (dia 18)

12 -Último Tango em Paris

17h30 - XXY

Terça-feira (dia 19)

12h - Dzi Croquetes

17h30 - Shortbus

Quarta-feira (dia 20)

12h -Calígula

17h30- Saló

ANÁLISE

Ousadia, beleza e desejo

Maria Luiza Rodrigues, Luiz Mello e Lisandro Nogueira / Especial para O POPULAR

O Cine UFG começou nesta semana (sessões às 12h e às17h30) a exibir uma série de filmes que são uma resposta inteligente, animada e provocadora a preconceitos de toda ordem. Diante da recorrência impressionante de ações, discursos e atitudes homofóbicas e racistas - além da crise vivida nos relacionamentos por homens e mulheres , para além do feminismo de outrora -, as produções escolhidas são uma excelente forma de colocar as coisas em outros termos. Ou seja, no clima neoconservador que parece nos assombrar, voltar os olhos e os ouvidos para o que contam as películas da mostra pode significar uma rara oportunidade de abertura para a alteridade e de momentos prazerosos e de reflexão profundos. Afinal, nada melhor do que respirar ousadia, beleza e te(n)são a partir de histórias que estão na fronteira entre o erotismo libertário e a opressão.

Todos os filmes exploram de modo exemplar as contradições que nos constituem como pessoas que buscam prazer e espécie que produz cultura. Como já nos ensinava o pai da psicanálise, S. Freud, nos idos de 1930, duas forças antagônicas operam embates irresolvíveis em nosso interior mais íntimo e nas nossas relações interpessoais: o impulso do gozo, simbolizado por eros, e o impulso de morte que habita o poder e é simbolizado por tânatos. Amor e ódio, vida e morte são pares que nos formam e que alguns diretores de cinema sabem trabalhar magistralmente.

Entre os 11 filmes que compõem a mostra, do Brasil podemos assistir a Eu Sei que Vou te Amar, de Arnaldo Jabor. Lançado em 1986, teve sua atriz principal, Fernanda Torres, premiada no Festival de Cannes. Trata da história de um jovem casal que se despedaça em tormentosa relação conjugal, numa espécie de terapia vertiginosa feita a dois, sem mediadores. As cenas nos conduzem a um mergulho no mais íntimo de suas experiências. A atração e a impossibilidade de completude se entrelaçam em falas e gestos cortantes.

Noutro diapasão, Dzi Croquettes, de 2010, nos brinda com uma revisita a tempos contraditórios: mostra a história de um grupo de jovens, os Dzi Croquettes, que revolucionou a cena teatral e artística brasileira através de muita ousadia e criatividade erótica, em pleno período dos anos mais pesados da ditadura brasileira. O filme nos convida a pensar nas inúmeras possibilidades de resistência em épocas conservadoras. É também um tributo cheio de emoção e nostalgia de um tempo que nos marcou profundamente.

Erotismo levado às últimas consequências é o que vemos em O Império dos Sentidos, do diretor japonês Nagisa Oshima, um clássico imperdível. Lançado em 1976, tem cenas de sexo explícito, de nudez e de erotismo que nos levam a pensar na proximidade entre beleza e crueza das nossas interações amorosas e sexuais. Podemos acompanhar a caminhada do casal protagonista que nos in(ex)cita a pensar sobre os sentidos de humanidade, amor, desespero e dor, sobre o impulso do prazer que se confunde com a pulsão de morte. Um filme fundamental na história do cinema.

De Bernardo Bertolucci, outro clássico: Último Tango em Paris, de 1972. Na tela, dois grandes artistas já falecidos, Maria Schneider e Marlon Brando, atuam em memoráveis cenas de sexo. O filme apresenta as contradições da relação de um casal que não diz seus nomes, numa cidade sombria e calada. Num apartamento para alugar, os dois mergulham numa busca paradoxal e que transcende limites. Prestem atenção na cena da sacada com Brando tirando o chiclete da boca.

Catherine Deneuve se consagrou como a esposa recatada e aparentemente bem casada que procura um bordel onde passa as tardes como prostituta, no fundamental A Bela da Tarde. Do grande diretor Luis Buñuel, o filme foi lançado em 1967 e ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Diante dos nossos olhos vemos desenrolar uma ação em que culpa, amor e incertezas se cruzam. O desempenho de Deneuve é memorável.

Numa ousadia que reúne cinema e crítica política, temos Sade, trabalhado através da câmera de Pasolini, em Saló ou os 120 dias de Sodoma, lançado em 1975. Esta combinação resultou num dos mais censurados e provocadores filmes em que a cena sexual é levada aos extremos das relações de poder. A história nos transporta para a Itália de 1941, durante os anos nazi-facistas, quando a hipocrisia moralista de Estados totalitários se mescla à destituição do outro, objetificado como instrumento de gozo.

Próximo em ousadia e em transgressão, Calígula, de 1980, dirigido por Tinto Brass, conta com a intensa atuação de Peter O'Toole e nos transporta a uma Roma em que a alcova, como parece ser quase sempre o caso em intrigas de Estado, determina os jogos de poder. Um imperador que ama sua irmã e que se relaciona com uma mulher comum num império repleto de intrigas. Crueldade, jogo eróticos e de poder afluem no desenrolar da história que vemos na tela.

Da América Latina temos XXY, a história de Alex, que não se sente menina ou menino. Realizado no contexto do que se costumou chamar de Nuevo Cine Argentino, o filme tem o aclamado Ricardo Darin no papel do pai que não sabe como lidar com a ambiguidade sexual de seu (sua) filho(a).

Shortbus narra experiências de jovens que se veem envolvidos em sexo, amor, política e questões existenciais. O filme, de 2006, tem trilha sonora de vanguarda de Yo La Tengo e é dirigido por John Cameron Mitchell. Intenso e com toques de humor, o filme é um caleidoscópio das possibilidades eróticas de um mundo em transição, onde a norma heterossexual não mais consegue impor limites a sujeitos que buscam reencontrar-se.

Já o belíssimo O Livro de Cabeceira, de 1996, dirigido por Peter Greenaway, conta a história de uma mulher que persegue o prazer que sentia quando, na infância, seu pai lhe pintava o rosto com saudações para comemorar seus aniversários. Neste filme, são memoráveis as cenas em que a protagonista tem seu corpo transformado em suporte para a escrita japonesa. As alianças entre paixão, transgressão, ciúmes e rispidez nos conduzem a labirintos visuais impressionantes.

Por fim, mas não menos importante, poderemos assistir a Desejo e Perigo, de Ang Lee, lançado em 2007, que nos mostra meandros da luta política e da atração sexual. Uma jovem chinesa é incumbida de lutar contra a ocupação japonesa. Para isso tem de atrair um colaborador do país opressor. Esta tarefa resulta em uma relação crivada de erotismo em que são evidenciadas as interconexões entre os negócios de Estado e os assuntos da do amor e do sexo.

Estes comentários pretendem ser um convite ao deleite visual e sonoro que estes filmes podem nos ofertar. Mas também são um canto de resistência e um grito de dor diante do desrespeito e da violência com que as vidas de muitas pessoas têm sido destruídas pela intolerância à diferença e às múltiplas possibilidades de prazer. Que a justiça erótica rime sempre com a alegria e a liberdade de gozo das pessoas adultas que se escolhem livre e reciprocamente como parceiros amorosos e sexuais.

Maria Luiza Rodrigues, Luiz Melo e Lisandro Nogueira são professores da UFG e curadores da mostra Sexo e Poder