Por que e dificil acabar com a dengue

Por que é difícil acabar com a dengue?
Capacidade de adaptação do vetor é empecilho para se vencer a guerra contra o mosquito. Por isso, o melhor é enfrentá-lo na fase larval

Sara Cassiano

Ainda nos primeiros meses de 2011, a dengue vem dando sinal de recuo. Em muitos estados, inclusive em Goiás, o número de casos demonstra uma vertiginosa queda, e os especialistas já apontam o ano como inter-epidêmico. Ou seja, não esperam anormalidades, mas preveem outra epidemia mais adiante, o que provoca a pergunta direta: por que ninguém consegue acabar com a dengue de uma vez?


A resposta, que deveria ser simples, talvez nem exista. De acordo com o diretor do Hospital de Doenças Tropicais de Goiás (HDT), Boaventura Braz de Queiroz, não é possível acabar com a dengue. Ele parte do princípio de que seria necessário erradicar o  Aedes aegypti, o famigerado mosquito transmissor da doença. "Mas é uma tarefa impossível", diz.


Não dá para acabar com o mosquito da dengue por várias razões, pelo crescimento da população, a ocupação desordenada do ambiente e a falta de infraestrutura dos grandes centros urbanos. "Com um trabalho rotineiro e a colaboração de toda a sociedade e o poder público poderá haver um controle, mas não a erradicação."


A caça ao mosquito parece ser a principal arma contra a dengue. Disso depende toda a humanidade, uma vez que  não existe tratamento para a doença que infecta milhões de pessoas em todo o mundo. A quem contrai o vírus só resta esperar, enfrentando febre, dores e mal estar, até que o efeito se esvai cerca de sete dias após o aparecimento dos sintomas.


Especialistas do mundo todo fazem coro ao sanitarista goi­ano. Segundo eles, para diminuir o número de casos da dengue, a única maneira é tomar medidas preventivas a fim de eliminar os criadouros do Aedes. O problema que se instala aí é que o mosquito em si não produz o vírus. Ele é apenas um transmissor. Por que, acabando com ele, a doença acaba, se ela mesma é outra coisa?


Combinação explosiva
O Aedes veio da África para o Brasil, em navios escravistas, mais precisamente do Egito, daí o nome (aegypti, quer dizer egípcio). Já o vírus da dengue, da família Flaviviridae, é asiático, e só chegou ao Ocidente bem mais tarde. No século XVIII, ele ainda aportava em países como Estados Unidos e o próprio Egito. Chegou ao solo brasileiro só em 1865, na cidade do Recife, Pernambuco.


O casamento entre vírus e mosquito se deu pelo fato de o primeiro não ter metabolismo próprio e precisar manipular células vivas, de um tipo que o Aedes tem. Segundo os especialistas, o vírus é da mesma família que causa a febre amarela. Por isso mesmo ambas as doenças são transmitidas aos humanos pela saliva dos mosquitos Aedes.


Neste caso, surge outra pergunta. A febre amarela tem um controle mais acentuado porque se conseguiu fazer a vacina. Mas como pode um vírus metabolizado no organismo do mesmo mosquito ser tão diferente de seu parceiro de berço a ponto de não se conseguir produzir vacina contra ele?


Enquanto isso, a cura é adiada por falta de respostas mais precisas, e a dengue perdura há anos, colecionando várias epidemias. Desde o final da década de 1970, quando a doença voltou com força, a cada dez anos o país sofre pelo menos duas epidemias. A primeira, após um longo esforço para erradicar o mosquito, se deu em 1981, em Roraima.


Na ocasião, foram isolados os vírus tipos 1 e 4 (DEN1 e DEN4). Depois, em 1986, houve outra epidemia, dessa vez no Rio de Janeiro e em algumas áreas urbanas do Nordeste com disseminação do DEN1 em mais de 50 mil casos.


A introdução do DEN2 no Rio de Janeiro ocorreu em 1990, atingindo várias áreas do Sudeste. Já em 1998, houve uma pandemia com mais de 500 mil casos. O vírus se espalhou por todo o País, com o Nordeste atingindo o maior número de vítimas.


Uma nova epidemia de dengue aconteceu entre 2001 e 2003, com o isolamento do vírus tipo 3, quando vários estados do Sul foram atingidos pela primeira vez. Entre um surto e outro há sempre a ameaça da dengue hemorrágica. Até o ano 2000, ela era rara no País. Mas com a chegada do vírus 3, aumentou muito o número de casos.


Hoje, aproximadamente 6% de mortes por dengue são ocasionadas pela hemorrágica. Desde a década de 1980, o vírus tipo 4 estava desaparecido. Mas recentemente, vários casos voltaram à tona, e a preocupação agora gira em torno do fato de que um maior número de pessoas poderá desenvolver a doença, já que a população não está imune ao DEN4.


Medidas
Em 2010, outra epidemia veio com força no país inteiro, quando aproximadamente 1 milhão de pessoas foram infectadas, das quais 592 morreram, segundo o Ministério da Saúde. Em Goiás, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde, nesse mesmo ano, foram notificados 115 mil , com  93 óbitos confirmados.


Sem uma ferramenta mais eficaz para combater o vírus da dengue, a única saída dos governos federal, estadual e municipal ainda é o combate ao hospedeiro da doença. Segundo especialistas, este controle se faz, sobretudo, através do meio ambiente e do modo de vida, numa relação direta à problemática socioambiental urbana, principalmente nas últimas quatro décadas.


Nesta perspectiva são envolvidos o clima, a urbanização desorganizada e intensa, a falta de saneamento e água tratada, além da ineficácia das políticas públicas no controle dos vetores da doença no País. E as orientações, aparentemente bem simples, partem de princípios de higiene e cuidados com o acúmulo de lixo.


Também deve ser levado em conta o cuidado com vasilhames que possam reservar água parada, mesmo que em pequenas quantidades. Essas medidas devem ser constantes e permanentes, porque, ainda que fora do período chuvoso, o ovo do Aedes aegypti consegue sobreviver a mais ou menos 492 dias.


Com menos de um centímetro, e um ciclo de vida em média de 45 dias, esse inseto tem a capacidade de se adaptar a situações as mais diversas possíveis, principalmente em países onde as condições do meio ambiente, associadas às dificuldades de saneamento básico, favorecem o seu desenvolvimento e proliferação de forma bem rápida.


Ou seja, há uma relação direta entre as chuvas e o aumento no número de vetores. A temperatura influi na transmissão da dengue. Raramente ocorre transmissão em temperaturas abaixo de 16º C. Ela ocorre preferencialmente em temperaturas superiores a 20º C – a ideal para a proliferação do Aedes aegypti estaria em torno de 30 a 32º C.


E isso seria uma das explicações para o fato de que os Es­ta­dos Unidos e a Europa, por e­xem­plo, não passem por e­pi­demias de dengue. Mas um fa­tor crucial não pode passar des­percebido: as condições so­cio­econômicas desses países, que são elevadas. Já no Brasil, mais da metade da população continua sem acesso à rede de coleta de dejetos e de água tratada.

Um mosquito essencialmente urbano
Para a professora Ellen Synthia Fernandes de Oliveira, do Instituto de Ciências Bio­lógicas (ICB) da Universidade Federal de Goiás, que faz parte do Grupo Integrado de Ações contra Dengue (GIAD/UFG), a presença do Aedes aegypti em áreas urbanas é o fator responsável pela reemergência da doença.


Segundo ela, esse mosquito, capaz de transmitir os quatro sorotipos do vírus dengue, tem hábitos essencialmente urbanos, e encontrou na complexidade do mundo moderno as condições ideais para se proliferar. Além disso, Ellen explica que cientistas citam a explosão demográfica, o aquecimento global e movimentação humana como os principais responsáveis pela presença incontrolável do Aedes aegypti nas cidades.


No entender da professora, a grande complexidade desse ambiente antrópico exige que se repense a estratégia de controle da doença, já que os criadouros potenciais encontrados no peridomicílio e intradomicílio, como garrafas plásticas, vidro, pneus, vasos, garantem a manutenção das altas densidades do vetor no ambiente urbano.


De acordo coma professora Menira Borges, do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP), a existência de um número elevado de casos da doença no país se deve a vários fatores. Para ela, o que é necessário ressaltar é que o papel da população é muito importante na prevenção de possíveis criadouros e, consequentemente, proliferação do vetor.


O Aedes se multiplica em depósitos de água parada, acumulada nos quintais e dentro das casas. Apesar da vida curta, o mosquito pode picar uma pessoa a cada 20 ou 30 minutos. Levando em conta que portando o vírus ele ainda vive cerca de 14 dias, se for muito ligeiro, poderá picar de 672 a 1.000 pessoas.


Ações e resultados
Considerando que o Aedes aegypti já se tornou um inquilino dos lares brasileiros, a maior preocupação com o extermínio desse indesejável hóspede deve recair mesmo sobre os donos da casa. Mesmo esperando ações mais frutíferas do governo, a sociedade civil precisa tomar consciência de que a caça ao mosquito é o único remédio que se tem.


Neste caso, a questão começa pela conscientização e envolvimento da sociedade de cobrar do poderes públicos federal, estadual e municipal a priorização de ações que possam levar água tratada, rede de esgoto e estação de tratamento para todas as cidades.
É o primeiro passo para resolver não só o problema da dengue, mas de muitos outros ligados à saúde pública.


Aí entra a questão do "dever de casa" citada pela professora Menira Borges, que também faz parte do Grupo Integrado de Ações contra Dengue (GIAD/UFG). Não é bom para ninguém acreditar que o quintal do vizinho é que está sujo. Isso pode pegar a família no contrapé da doença, elevando o número de casos de uma região inteira.


Além disso, ao longo de 30 anos de epidemias sucessivas, só agora o governo federal e as secretarias estaduais tiveram a ideia de viajar o país e as cidades em caravanas de conscientização e debate sobre como combater o mosquito, que estratégia montar para pegar o inseto mais procurado do território brasileiro.


O governo estadual também vem desenvolvendo outras ações como o Agente Mirim e o Síndico Dengueiro, projeto que tem um servidor em cada órgão responsável por todas as questões relativas à eliminação de criadouros nos prédios públicos. O Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás (CBMGO) também está desenvolvendo ações na campanha de combate à dengue no Estado.


Integrante do Comitê Estadual Contra a Dengue, a corporação montou equipes que estarão percorrendo todas as unidades dos bombeiros, com o objetivo de conscientizar o efetivo do CBMGO para a eliminação de possíveis criadouros do mosquito.

 

O vaivém da dengue


As epidemias enfrentadas em todo o País revelam a cada ano que o problema está mais sério do que se pensa

Por mais que as autoridades tentem barrar o avanço da dengue no Brasil, há sempre descuidos que fazem o vírus voltar com força. Este ano, até 26 de fevereiro, foram registrados 155.613 casos em todo o país.


No Rio de Janeiro, a  situação é sempre o mais grave. No primeiro mês de 2011, a Secretaria Estadual de Saúde fluminense e a Defesa Civil notificaram 485 casos só na capital, um aumento de 440% em relação ao mesmo mês do ano passado. O Estado já registra 18 mortes por dengue este ano.


Em números absolutos, a região Norte tem o maior número de casos notificados (49.101; 31,6%), seguida da região Sudeste (42.092; 27,0%), Nordeste (28.653; 18,4%), Centro-Oeste (19.066; 8%) e Sul (16.613; 11,3%). Goiás ainda apresenta o maior número de casos notificados em sua região, seguido pelo Mato Grosso do Sul.


Os números são alarmantes e a cada ano surpreendem mais pela gravidade de casos com óbitos. Mas não é difícil perceber também que neste ciclo de epidemias os surtos de dengue variam apenas de local e o número de casos de acordo com a densidade populacional da região afetada.


Ou seja, durante todos estes anos, a doença tem se mostrado como um problema recorrente, porque é complexa e tem relação direta com o clima, acesso à água, limpeza das cidades, informação, educação, padrão de urbanização, situações que estão presentes na maioria dos municípios brasileiros.


Globalização

A dengue, no entanto, não é um transtorno enfrentado só no Brasil. A incidência da doença em todo o mundo tem aumentado, afetando anualmente cerca de 100 milhões de pessoas em mais de 100 países nas regiões tropicais e subtropicais, conforme estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS).


De acordo com as professoras Ellen Synthia Fernandes, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), e Menira Borges de Lima Dias, do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP), a reemergência da dengue tornou-se, a partir da década de 1960, um grave problema de saúde pública nas Américas.


Segundo elas, que fazem parte do Grupo Integrado de Ações contra Dengue (GIAD/ UFG), as Américas são responsáveis por cerca de 60% das notificações de dengue no mundo, e o Brasil concentra cerca de 70% dessas notificações.


A dengue está presente em 26 das 27 unidades federativas brasileiras, com circulação viral simultânea na maioria dos Estados. As especialistas explicam ainda que a ocorrência da dengue resulta em elevado impacto social e econômico da região afetada. Segundo elas, cerca de 2,5 bilhões de pessoas no mundo inteiro encontram-se sob risco de se infectarem.


Com o aumento das temperaturas pelo aquecimento global, alguns estudiosos também já consideram que regiões no sul dos Estados Unidos e Europa estão se tornando zonas endêmicas. Isso porque o aumento da temperatura faz o mosquito proliferar mais nesses ambientes.


Condições favoráveis
No Brasil, o clima quente nos meses de verão é um dos agravantes do aumento na taxa de reprodução do mosquito. Além disso, a dengue tem uma relação estreita com as grandes cidades, por estas apresentarem uma maior concentração populacional e circulação de pessoas de diversas regiões.


Em Goiás, a gerente estadual de Vigilância Epidemi­ológica da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Magna Maria de Carvalho, destaca que soma-se a isso o fato de que a população, mesmo tendo conhecimento dos riscos da dengue, mantém uma resistência em mudança de comportamento para prevenção da dengue.


Magna explica que uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde no ano passado mostrou que mais de 90% da população têm conhecimento sobre a dengue e sabe como preveni-la. Segundo ela, o que falta é transformar esse conhecimento em ação. "Essas questões não dizem respeito só ao setor de saúde, envolvem toda a população."


A gerente analisa que no caso específico de Goiás, talvez o estado necessite mudar as campanhas educativas, uma vez que as informações atuais não estão obtendo respostas positivas para transformar o conhecimento em ação.


As adaptações do mosquito para sobreviver, devido ao clima quente e às estações chuvosas bem definidas, também são apresentadas como fatores que dificultam a solução da dengue. Magna acredita que, com uma mobilização de toda a sociedade e das áreas do poder público, a situação pode ser melhorada.


Até o último dia 26 de mar­ço, em todo o Estado de Goiás, o número de casos de dengue registrados era de 13.684, com dois óbitos, sendo um em Goiânia. Os dez municípios com maiores casos da doença são Goiânia, Apa­re­cida de Goiânia, Anápolis, Trinda­de, Senador Canedo, Piracan­juba, Luziânia, Goiás, Jataí e Goianésia.