Herois sem assistencia

  Heróis sem assistência

Espécies de novos proletários, médicos se dividem em triplas jornadas de trabalho na busca por remuneração proporcional à dedicação e responsabilidade
Fernando Leite/Jornal Opção
Leonardo Reis, presidente do Simego: “Tabela do Ipasgo está defasada”

Márcia Abreu

Eles salvam vidas e dedicam ciclos a isto. A palavra ócio, certamente, não consta no “dicionário” do médico desde o dia em que ele opta pela profissão. No Brasil, o vestibular de medicina sempre foi o mais concorrido das universidades públicas. Por isso, o aluno do ensino médio que almeja fazer este curso estuda de 8 a 12 horas por dia. Ao ingressar na academia, se dedica por mais seis anos aos estudos, fora o tempo de especialização que varia entre dois e cinco anos. O custo com a graduação não costuma ser pequeno. Os livros são caros e o aluno, novamente, estuda em horário integral.

Depois de formado, o médico vai para o mercado de trabalho habilitado a cuidar do bem mais valioso do ser humano: a vida. E a saúde, como dizia o filósofo, escritor e poeta americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882), “é a maior riqueza do homem”. Jurando dedicação à arte da cura, fidelidade aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência, o médico segue sua caminhada sem saber quanto tempo terá para se dedicar à família e ao lazer, mas, naturalmente, à espera de recompensa, como o sucesso médico no dia a dia, e o retorno financeiro.

No entanto, encontra problemas. A estabilidade e a independência financeira vêm, mas com trabalho dobrado. Os médicos tornaram-se hoje uma espécie de novos proletariados – conceito usado por maxistas, anarquistas e comunistas para definir a classe antagônica ao capitalismo. A falta de piso salarial e a defasagem dos preços de consultas, exames e cirurgias nas tabelas de alguns planos de saúde fazem com que esses profissionais chamados de heróis, que passam mais horas nos hospitais do que em casa com a família, tenham de trabalhar em vários locais diferentes na busca por um padrão razoável de vida.

Quem mais perde é a sociedade. A má remuneração dos médicos e a sobrecarga de trabalho resultam no atendimento rápido ao paciente - às vezes superficial -, no atraso de consultas e em alguns casos em corrupções médicas. Insatisfeito com a valorização da classe, o profissional pode se envolver mais facilmente com atos ilícitos.

O oftalmologista e presidente do Sindicato dos Médicos de Goiás (Simego), Leonardo Mariano Reis, aborda os problemas enfrentados diariamente por médicos goianos no que diz respeito aos planos de saúde complementar e ao Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ele, uma cirurgia de adenóide (nariz) custa em média R$ 61,00; a de calázio (caroço) no olho, R$ 33,70. “Como deslocar-se ao centro cirúrgico, preparar-se para a cirurgia, aplicar anestesia no paciente, utilizar alguns produtos, como fio, retirar o caroço do olho, tudo isso por R$ 33,70?”, questiona. Para ele, chegará o momento em que pacientes precisarão dos serviços, mas os médicos não os farão porque os preços quase não pagam os gastos que o médico tem com a cirurgia.

Na opinião do presidente do Simego, os planos de saúde são os que mais faturam porque cobram caro do paciente e pagam tabela defasada. São, segundo ele, os grandes patrões dos médicos. “Pagamos um valor alto na compra de materiais para consultas e cirurgias. E no fim recebemos o que os planos querem pagar. Para se ter ideia, uma das maiores fortunas hoje no país é do dono de um plano de saúde.”

De origem pública, o SUS é usado por milhões de brasileiros, além de criticado por oferecer atendimento superficial. O oftalmologista Mariano Reis diz que trabalhar com o SUS significa fazer caridade porque falta financiamento da saúde pública e o recurso que chega não é suficiente para a contratação dos serviços necessários. Por isso, os procedimentos médicos são negociados em baixos valores. “Atender pelo SUS é ajudar quem precisa da saúde pública. Com exceção de cirurgias cardíacas e da maior parte de otorrinolaringolia, que são mais bem remuneradas pelo SUS do que pelo plano de saúde estadual.”

Quanto ao Ipasgo, o instituto aumentou, segundo o médico, seu faturamento médio anual de 2003 para 2004 em cerca de 150%. O valor arrecadado por ano pelo plano chega à casa dos R$ 71 bilhões.

Salário digno

A medicina é como a educação: merece salário digno. Curar doenças e prolongar a vida são tão importantes quanto o ensino de qualidade que o país precisa para combater as desigualdades sociais, o desemprego e a fome. Na Câmara Federal, tramita desde 2008 um projeto de lei de autoria do deputado federal Ribamar Alves (PSB/MA) que fixa piso salarial de R$ 7 mil por 20 horas semanais aos médicos e cirurgiões dentistas. Arquivado no ano passado pela mesa diretora da Câmara, o projeto saiu da gaveta em fevereiro deste ano por solicitação do pecebista Ribamar. Não houve nenhum pedido de emenda e o PL pode ser apreciado ainda este semestre na Casa.

Dados da Federação Nacional dos Médicos (Fenam) mostram que o valor atualizado do piso previsto pelo projeto de Lei que tramita na Câmara passou de R$ 7 mil para R$ 9,122, 155.

De acordo com o Sindicato dos Médicos de Goiânia, o valor médio (preço bruto) de consulta paga pelos planos de saúde em Goiás varia entre 40 e 50 reais. O mais barato é o da Prefeitura da Capital, o Instituto de Assistência à Saúde e Social dos Servidores Municipais de Goiânia (Imas), de 39 reais. O Ipasgo, plano do Estado, paga 42 reais e a Unimed, a que melhor remunera, 50 reais. Destes valores, são descontados Impostos de Renda (27,5% do valor total é destinado para este fim) e de Seguro Social, INSS. Então, por exemplo, no caso de uma consulta de 42 reais paga pelo Ipasgo, o médico terá que repassar R$ 11,55 para o IR, fora o valor destinado ao INSS. Já o Sistema Único de Saúde (SUS) paga 10 reais por consulta especializada.

Médicos duplicam jornada de trabalho

Para manter um padrão razoável de vida, os médicos têm dobrado a jornada de trabalho. O gastroenterologista Américo de Oliveira Silvério tem quatro empregos e trabalha 12 horas por dia, o que equivale a 60 horas semanais, fora os plantões do final de semana.  Silvério possui um consultório, o qual dedica de 30 a 40% de seu tempo. Os outros 60% são divididos entre o atendimento em uma clínica particular e às aulas na Universidade Federal de Goiás (UFG) e Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), onde é professor do curso de medicina. O médico consegue ainda tempo para a residência de gastro no Hospital Geral de Goiânia (HGG), da qual é responsável.

As dificuldades da classe médica, segundo Silvério, não se restringem apenas à remuneração do trabalho, mas aos valores dos produtos usados nos serviços clínicos. Ele cita o algodão que é comprado mais barato pelo paciente para uso pessoal. “Pagamos mais caro pelo mesmo produto.” Silvério fala da dificuldade de manter um consultório e do fato de o profissional da saúde ser visto como vilão quando briga pelos seus direitos. “Há leitos e profissionais nos hospitais. O que não tem é boa remuneração. Nós (categoria médica) somos tão vítimas do sistema quanto o paciente.”

O baixo valor pago pelos planos de saúde e a jornada de cerca de cinco empregos diários pode resultar em outro problema: a corrupção. Para Silvério, o desvio de conduta existe em qualquer profissão. Entretanto, as dificuldades encontradas pelos especialistas podem levá-los ao desvio de dinheiro. “Participar de ato ilícito depende da índole de cada um. É claro que se o médico for mal remunerado pode acabar se envolvendo com corrupção, como compra de insumos, de órtese e prótese, isso pode acontecer Não é o objetivo, mas pode. É preciso seriedade na aplicação das leis e responsabilidade por parte do poder público com as questões da saúde”, avalia o gastro.

Apesar de todos os contratempos, Silvério considera a medicina uma profissão gratificante. “É bom trabalhar para restabelecer o que a pessoa tem de mais importante, que é a saúde. Eu só fico preocupado quando ouço comentários que banalizam a categoria devido aos erros médicos. Isto acaba fazendo o paciente se distanciar do médico, o que não é bom.”

Pensando em fugir desta rotina acelerada do profissional de medicina, o ginecologista Eberth Franco Vêncio buscou uma alternativa fora da área médica para sua vida. Eberth, que é escritor, entrou para o ramo comercial e hoje é sócio de uma empresa de gastronomia em Goiânia, um dos restaurantes mais conceituados da Capital.

“Foi uma opção estratégica minha. Busquei-a fora da medicina, quis diversificar minha vida profissional e deu certo.” O ginecologista concilia o trabalho empresarial com o atendimento a pacientes no Centro de Atendimento a Incidentes de Segurança (Cais) Pedro Ludovico. A jornada é de quatro horas semanais. O troca-troca diário de local de trabalho ficou apenas na memória. “Lembro-me dos primeiros anos de profissão, época em trabalhava em cinco lugares diferentes e fazia plantão nos finais de semana.”

Hoje, dificilmente um médico consegue ter um padrão confortável de vida se não trabalhar 14 horas por dia sem direito a final de semana e férias de 30 dias.

Formado pela UFG, o ginecologista e obstetra Divino Miranda tem 20 anos de profissão. Mesmo estando há duas décadas no mercado, trabalha em três locais diferentes. Atende em seu consultório particular pela manhã e dedica oitos horas diárias ao atendimento público municipal e estadual. À repórter, o médico, que assim como Eberth trabalha no Cais Pedro Ludovico, revela o prazer em atender o serviço público de saúde. Oriundo de família pobre de Itumbiara, ele conta que seus pais fizeram uso do SUS, e que isso chamou sua atenção para o atendimento público. “Eu gosto do que faço. Trato bem o paciente.”

No entanto, se o piso salarial de R$ 7 mil fosse aprovado no legislativo brasileiro e sancionado pela presidente, Miranda diz que ficaria em um só emprego. “Esse valor me satisfaria.” Enquanto a Câmara Federal não aprecia o Projeto de Lei, Miranda segue com sua jornada dobrada de trabalho. O ginecologista dedica a noite às cirurgias. “Eu as faço após as 19 horas ou antes das 7 horas.”

Especialistas insatisfeitos com o Ipasgo

O mastologista Alexandre Marchiori é formado há sete anos e entende bem da rotina corrida do médico. Entre uma consulta e outra, falou sobre suas atividades diárias à reportagem. Machiori tem quatro empregos, dois deles públicos (um estadual, outro municipal), num deles é legista; e atende em dois consultórios particulares. Nos finais de semana, faz cirurgias eletivas e exames de imagem. Aumentar a carga de trabalho foi a saída que encontrou para melhorar a fonte de renda. “O dinheiro das consultas destino aos gastos com o consultório. Desta forma, o consultório acaba se pagando. Se trabalhasse apenas em um lugar não sei como viveria.”

Alexandre admite que a “peregrinação” por diferentes locais de trabalho impacta no atendimento ao paciente. Perde-se o lado da humanização, não há tempo para conversa que não esteja relacionada ao ato médico. Os especialistas são, em geral, objetivos e focam no diagnóstico.”

O mastologista se mostrou bastante desanimado com a situação do Ipasgo. Poucos minutos antes de conceder a entrevista ele soube que o Instituto baixaria o valor dos exames de imagem. Machiori não quis aprofundar na discussão em torno do plano porque, segundo ele, isso impactaria psicologicamente nas consultas que faria depois da reportagem.

Para o médico, o aumento recente no preço da gasolina ( ICMS destinado, segundo o governo, à recuperação de rodovias), o baixo valor pago pelo Ipasgo aos médicos e o ajuste no valor da comida vai na contramão de tudo que o atual governo disse durante a campanha eleitoral.

Assim como Marchiori, o dermatologista Adriano Jaime Loyola, formado em 1999 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui mais de três empregos. Loyola atende em seu consultório particular, das 8 às 18 horas, e tem dois concursos públicos, municipal e estadual, para os quais atende ambulatório das 19 às 22 horas e faz plantões em alguns finais de semanas.

“Até os médicos que têm muito tempo de carreira e nome na cidade são professores de faculdades ou chefes de residências em hospitais. Busca-se mais emprego exatamente para compensar a baixa remuneração. Com isso, acabamos por deixar de lado as orientações aos pacientes. Fazemos o exame, diagnosticamos e passamos o remédio.”

Loyola também se preocupa com os planos de saúde. Ele diz que os médicos estão sendo dominados pelas operadoras. “O profissional escolhe um dia para o retorno porque o paciente precisa de acompanhamento e o plano acha que aquele dia não é o certo. Eles interferem até no ato médico. Já aconteceu de ginecologista solicitar exame de gravidez à paciente e o plano não liberar por considerar que não era preciso.”

Tabela

Segundo o dermatologista, a tabela do Ipasgo, que segue a Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), de 1994, tem mais de dez anos de defasagem. Videolaparoscopia, diz ele, é um procedimento de diagnóstico feito com muita frequência pelo ginecologista e não existe na tabela. “Hoje quando o médico solicita este exame não há código. Então é uma briga grande com as operadoras de saúde porque elas tentam monopolizar e são as que mais lucram. Um estudo recente mostra que em 2003 os planos faturavam R$ 23 bilhões anualmente. Em 2010, este valor subiu para R$ 63 bilhões. Já a consulta médica que em 2003 custava 30 reais, hoje vale 40. Subiu 10 reais em sete anos.”

Urologista se divide entre Brasília, Goiânia e Bela Vista

O urologista João Paulo Camarço formou-se em 2003. Com quase oito anos de graduação, cinco de especialização e um e meio de mercado, analisa que os médicos sobrevivem muito em função dos concursos públicos. Camarço é concursado em Brasília e Goiânia; atende em dois consultórios particulares na Capital e mantém contrato em Bela Vista de Goiás, onde passa as sextas-feiras. À Brasília, dedica as terças-feiras. Segunda, quarta e quinta-feira fica na Capital. “Há pouco tempo parei de dar plantão. Mas foram quase oito anos contando com o tempo de especialização.”

O salário de concursado deixa a desejar. Cerca de R$ 1 mil no âmbito municipal, ou seja, de Goiânia, e aproximadamente R$ 2 mil no estadual. A remuneração deficiente leva, segundo o médico, à sobrecarga de trabalho. “Com base nisso, a qualidade do atendimento cai porque, naturalmente, atenderemos demanda grande de pacientes. E temos agenda tão lotada que se atrasamos uma cirurgia, por exemplo, o impacto se dará em toda a agenda.”

O urologista chama a atenção para o fato de o médico escolher a profissão muito jovem, dedicar anos aos estudos, abdicar da família e do lazer e se cercar de impasses no mercado de trabalho. “A gente assume responsabilidade aos 17 anos na escolha do curso. Decide cuidar de vidas e, para isto, estuda média de oito anos, fora mestrado e doutorado que para passar é outra luta. Então 11 anos de estudo são poucos porque quem está no mercado tem de se aperfeiçoar sempre.”

Assim como os outros médicos ouvidos, Camarço critica o atraso das operadoras dos planos de saúde e a tabela de preço, segundo ele, defasada. O urologista aborda a questão da má qualidade da formação médica por conta da proliferação indiscriminada de cursos de medicina sem comprovação de excelência para formação de profissionais. “Falta controle do número de vagas nas universidades, demandas demográficas; há a ausência de supervisão, qualificação e remuneração aos programas de pós-graduação; faltam mecanismos de acreditação e certificação dos hospitais de ensino e fiscalização das faculdades. É preciso se atentar para estas questões.”