Elas nasceram no corpo errado
Wanessa Rodrigues
Quando criança, a técnica em enfermagem Carla Bianca, de 42 anos, gostava de brincar de bonecas, vestia as roupas das tias e usava salto alto. Atitudes que, para ela, pareciam normais, afinal todas as meninas faziam as mesmas brincadeiras. Era assim que ela se sentia, uma garotinha comum que gosta de vestidos, maquiagem e tudo mais do universo feminino. Mas Carla descobriu que tinha uma diferença. Apesar de pensar e agir como mulher, não tinha o corpo compatível com seu gênero. Ela nasceu com órgão sexual masculino.
Batizada como Carlos Henrique Castro Pereira, a técnica em enfermagem descobriu a transexualidade na adolescência. Foram épocas difíceis, de depressão e muito choro. “Entrei em crise por achar que era diferente, uma coisa de outro mundo. Mas, a partir do momento em que me assumi, minha vida mudou por completo e, hoje, me sinto feliz”, relata. E a vida de Carla está prestes a mudar ainda mais. Ela é uma das oito pessoas que, este ano, vão passar pela cirurgia de redesignação de sexo no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Desde que começaram os procedimentos de mudança de sexo no HC, em abril de 2001, 38 pessoas já se submeteram à cirurgia do masculino para o feminino e quatro do feminino para o masculino. Este ano, 12 mulheres transexuais estão prontas para a cirurgia, no entanto só serão realizados oito – as restantes ficarão para o próximo ano. Outras 36 pessoas fazem parte do processo transexualizador, ou seja, ainda estão por completar o tempo mínimo exigido pela portaria 1.707 de 18 agosto de 2008.
São dois anos de acompanhamento multiprofissional até que os candidatos às cirurgias estejam prontos. A ginecologista Mariluza Terra, coordenadora do programa no HC, explica que as pessoas que passam pelo procedimento são aquelas que se sentem desconfortáveis, ou seja, nascem com o sexo feminino e se sentem homens e vice-versa. Durante o período de preparação para a cirurgia, os candidatos passam por acompanhamento psicológico. Normalmente, conforme diz a ginecologista, as famílias são chamadas para tomar ciência das condições do familiar. “Mas nem todas estão interessadas, o que é uma pena”, completa.
Também fazem parte do projeto do HC uma fonoaudióloga, uma assistente social, dois enfermeiros, uma clínica geral, um otorrinolaringologista, dois psiquiatras, dois ginecologistas, uma endocrinologista, um urologista, um proctologista e um cirurgião plástico.
Discriminação ainda é o grande desafio
A ginecologista Mariluza Terra observa que a população ainda desconhece o que é uma pessoa gênero-variante e tende a discriminar essas pessoas, ignorando o grande sofrimento que elas têm por serem diferentes. Ela diz que é importante ressaltar que essas pessoas são diferentes não porque querem, mas porque em algum momento de suas vidas alguma coisa que ainda não se sabe precisar saiu fora da programação mais comum. “E cabe ao profissional de saúde restabelecer a harmonia perdida, assim como é feito em diferentes áreas”, esclarece.
A especialista diz que o preconceito em relação ao transexualismo ainda é muito grande. Ela faz a comparação com o preconceito que existia na Idade Média, em que todos os doentes psiquiátricos eram enviados à fogueira pelo desconhecimento das doenças psiquiátricas. “Achavam que estavam possuídos pelo demônio. Assim, o preconceito somente terá fim quando a luz do conhecimento acabar com as trevas da ignorância”, declara.
Ela faz questão de ressaltar que as pessoas que acham que a população transexual é algo “demoníaco”, que, da mesma forma como qualquer um, eles e elas são criaturas de Deus e que, como todo ser humano, merecem muito respeito. “Não só porque sofrem mais do que a maioria desde a infância, mas também porque lutam para se integrar a uma sociedade que os despreza”.
“Eu realmente vou me tornar uma mulher”
“Criei você como menino e não como menina.” Carla Bianca nunca esqueceu a frase dita com frequência pela avó. Mesmo assim, ela nunca teve problemas de preconceito na família e nem na escola. Mas usou por muito tempo trajes masculinos. Na adolescência, os namorados não a viam como mulher. Mas a sua história mudou. Há três anos, ela se veste como mulher e encontrou o companheiro que sonhava. Ela está casada há dois anos. Agora, prestes a fazer a cirurgia , ela não exita em dizer: “Eu realmente vou me tornar uma mulher”.
Quando começou o acompanhamento no HC, há um ano e três meses, Carla sentia receio, pensava muito em como seria sua vida depois do procedimento. As dúvidas eram principalmente ligadas à questão religiosa, pois ela é de uma família evangélica. Superados os conflitos, a técnica em enfermagem diz que hoje se sente tranquila e, com humor, diz que vai poder ir ao banheiro feminino sem constrangimento, colocar biquíni e ir à praia com tranquilidade. “Sou muito vaidosa, só ando maquiada. Sempre quero ser uma linda mulher.”