Para que servem as calçadas?

Para que servem as calçadas?

As calçadas de Goiâ­nia se prestam a to­dos os tipos de fins. Servem como lanchonetes improvisadas, lixões de entulhos, estacionamentos para automóveis, pontos de camelô e oficinas de carros.  Em diversos setores da capital, as calçadas funcionam para tudo, menos para a mobilidade dos pedestres.
Os goianos que optam por andarem a pé enfrentam desagradáveis situações todos os dias. A precariedade da infraestrutura urbana como iluminação, apropriação ilegal do espaço público por bares ou comerciantes ajudam no crescente número de adeptos aos carros.
Ainda há os desrespeitos dos automóveis, calçadas estreitas, esburacadas e sujas que apoiam à deficiência da acessibilidade. No caso da musicista Isabela Negrini (21 anos), a instabilidade das calçadas lhe custou uma fratura na perna esquerda e 12 dias usando bota ortopédica.
Isabela estava à caminho do trabalho, no Coro da Orquestra Sinfônica de Goiânia, na rua 4 do Setor Central. Ao atravessar a rua, que dá acesso ao edifício público Pathernon Center, foi descer o meio fio, não viu o buraco na margem da calçada e caiu direto no chão.
“Pior que a dor foi o susto. Depois fui levada ao hospital e recebi o diagnóstico de que havia fraturado a perna.  Infeccionou e tive que fazer raspagem”, comenta. E nem havia sido a primeira vez. Isabela conta que alcançou a experiência de tombos.
Em outra ocasião, a musicista andava na calçada ao lado de um prédio que estava sendo construído, no Setor Universitário. Quando foi tentar se desviar dos entulhos da obra, não viu as britas no chão e escorregou. “Quando dei por mim, estava caída nas pedras e na areia. Ralei os joelhos e as mãos.”
Ela diz que soube usar os joelhos como freios. “As construtoras colocam materiais de construção nas calçadas e a única solução dos transeuntes é passar pela rua, espaço destinado aos carros e veículos maiores”, diz Isabela. E os automóveis não esperam os pedestres se desviarem das calçadas impossibilitadas. “O fato é que não existe respeito e educação”, reclama.
Depois de duas quedas, Isabela aprendeu a ter mais atenção e não confiar nas calçadas de Goiânia. “A qualquer momento pode ter buracos e entulhos. Ou você se arrisca a atravessar, ou passa pela rua enfrentando os automóveis. Os pedestres são os maiores excluídos da mobilidade urbana da capital.”
Responsabilidade
O Estatuto do Pedestre de Goiânia, criado em 2009, afirma que as calçadas são partes da via, normalmente segregada e em nível diferente. Não destinadas à circulação de veículos, são reservadas ao trânsito de pedestre e, quando possível, à implantação de equipamento urbano, sinalização e vegetação. Mas na prática, a realidade é outra.
A arquiteta e urbanista em Transportes Públicos Erika Cristine Kneib, diz que existem várias leis que criminalizam o uso incorreto das calçadas. “A legislação afirma que deve priorizar a mobilidade dos pedestres. O regulamento existe, mas não é cumprido. As calçadas irregulares são ilegais e não condizem com a justiça.”
O estatuto afirma que o mau estado de preservação das calçadas e obstáculos que impedem o trânsito livre e seguro dos pedestres é considerado crime. Também é frisado que os equipamentos urbanos nas calçadas não podem bloquear, obstruir ou dificultar a caminhada dos pedestres.
Apesar do documento emergencial, os problemas só crescem. Segundo a Secretaria Municipal de Planejamento (Seplan), dos 107 bairros da Capital, 90% estão irregulares, ao passo que 70% dos passeios públicos estão quebrados, dificultando o tráfego de pessoas.
São os respectivos proprietários dos imóveis responsáveis pelas irregularidades das calçadas. Para Erika, que também é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), o problema é a falta de educação, conscientização e fiscalização. Este último é o principal mecanismo modificador da realidade das calçadas de Goiânia.
As faltas de rampa para deficientes físicos e pavimentação adequada para os deficientes visuais são uma das principais questões apontadas por ela. “Partes das calçadas estão com buracos e matagais. Quando chove, tornam-se verdadeiros lamaçais inacessíveis. E também há os vendedores ambulantes que fazem das calçadas vitrines abertas.”
“Fiscalizar também é educar. A prefeitura e as secretarias, a exemplo da Seplan e da Agência Municipal de Trânsito (AMT), devem criar mecanismos para uma fiscalização ativa e inteligente. Trabalhar em campanhas educativas e apresentar formas de se reformarem as calçadas de um jeito viável e responsável é de total relevância para o desenvolvimento do tráfego dos pedestres.”
O artigo 5º da Constituição Federal estabelece o que se convencionou a chamar de direito de ir e vir de todos os cidadãos brasileiros. “A liberdade a que me refiro é aquela que nos possibilitaria caminhar pelos passeios públicos sem nos deparar com desníveis, buracos, rampas fora dos padrões, lixeiras, bueiros destampados, ambulantes e pisos escorregadios”, ressalta Erika.
Para solucionar é preciso fiscalizar
Na busca de soluções para a melhoria da infraestrutura das calçadas, assim como a da mobilidade dos pedestres, o principal mecanismo modificador é a fiscalização. A Agência Municipal de Trânsito (AMT), responsável por inspecionar veículos parados, desenvolve diversas operações em prol das desobstruções das calçadas.
As ações da entidade começaram desde agosto e já promovem mudanças na capital de Goiás. Liderados pelos fiscais de posturas, foram visitados inicialmente os principais pontos de maiores problemas, localizados na região dos Setores Pedro Ludovico, Bela Vista e Nova Suíça.
Segundo o presidente da AMT, Miguel Tiago, devido à grandiosidade de Goiânia, ainda há complexidade de fiscalização em diversos setores, principalmente os periféricos. “Já fizemos algumas intensificações e obtivemos bons efeitos. O papel da AMT é de garantir a mobilidade de toda a cidade e focar na educação dos motoristas.”
A organização trabalha com operações de fiscalização temática. Alguns dias as ações são focadas nas motos, e em outros, nos carros. “Com esse sistema de inspeção, abrimos espaço para que os agentes trabalhem focados em determinados veículos. O trabalho fica organizado e dá maior abrangência nas regiões à margem dos centros”, explica o presidente.
Só na AMT existem cerca de 360 agentes que ajudam na fiscalização da mobilidade urbana. Tiago diz que as operações que envolvem carros nas calçadas são rotineiras. “Estacionar nas calçadas é uma das maiores infrações cometidas pelos motoristas. Trabalhamos em prol do bem estar da população, mas antes de fiscalizar, é necessário respeito.”
Infraestrutura
Na urgência pela mobilidade no centro da capital, a Prefeitura começou a construir, desde início de novembro, uma ciclovia que terá cerca de três mil metros de extensão e será iniciada na Praça Cívica, percorrendo a Rua 10, até chegar à Praça Universitária. Entre lamentos e reivindicações, o projeto tem como objetivo incentivar os goianos a andarem a pé e de bicicleta.
Apesar da reformulação na Rua 10, as outras partes de Goiânia ainda possuem calçadas inapropriadas para a locomoção. É nesse sentido que a Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvime­nto Econômico (Seplan) fiscaliza as calçadas da cidade.
Antes de tudo, a entidade aposta na conscientização. Em 2010 foi criado o projeto que realiza estudos sistemáticos para a criação de um modelo de calçadas para Go­iânia. A iniciativa é uma junção entre a Seplan com diversas instituições, como a AMT, Agência Municipal de Obras (Amob), Conselho Re­gi­onal de Enge­nharia e Arqui­te­­­tura (Crea) e Mini­stério Público (MP).
O projeto tem como primeira etapa o lançamento de uma cartilha explicativa e de fácil entendimento popular que retrata a importância de se manter o espaço dedicado ao transeunte. Outra apostila, de caráter técnico, será divulgada no site da Secretaria e é destinada a engenheiros e construtores.
Trata-se, segundo os idealizadores, de uma forma mais fácil de padronizar as novas construções. Por fim, a prefeitura vai desenvolver o plano de construção de calçadas públicas e municipais. Para Miguel Tiago, a ideia do manual é uma tentativa de conscientizar a população.
Calçadas para todos
O principal objetivo das calçadas, segundo o Estatuto do Pedestre de Goiânia, é oferecer acessibilidade aos pedestres. Em países como França e Inglaterra, isso já saiu do papel há tempos. Nas cidades destas nações, as calçadas passaram por um processo de reformulação em prol da sustentabilidade e mobilidade do pedestre.
A urbanista em Transportes Públicos, Érika Cristine Kneib, afirma que em Paris, por exemplo, é comum ver as calçadas sendo reformadas. “A população possui o hábito de andar a pé. A qualidade das calçadas dá esse incentivo em prol da mobilidade urbana.”
As calçadas ecológicas e responsáveis priorizam os pisos para deficientes visuais e físicos. Além disso, possuem faixas jardinadas, em decorrência à permeabilidade da água, com o mínimo de meio metro de largura. As construtoras já começam a fabricar pisos ecológicos, criados a partir do plástico específico para calçadas.
Já em Goiânia, Erika explica que a necessidade ainda é o básico. “Deve haver uma comunhão entre poder público e cidadãos. Caminhar é uma das principais soluções para o melhoramento do trânsito da capital. Enquanto não existir conscientização, o trânsito de Goiânia continuará saturado e as calçadas, deficientes.”
“A questão merece realmente muita atenção. Falamos das cidades que deixaremos para as próximas gerações. As soluções já nos bateram à porta, como nas cidades europeias. A construção de ambientes acessíveis deve ser cadeira obrigatória nos cursos de engenharia e arquitetura”, afirma a urbanista.