Parcialidade na historia

Parcialidade na história

Propaganda petista em livros didáticos distribuídos em escolas públicas gera polêmica
Jornal Opção
Marco Antonio Villa, historiador: “É tentativa de influência 
político-partidária”

Márcia Abreu

A discussão em torno de dois livros didáticos de história distribuídos em escolas públicas brasileiras esteve em alta na semana que se passou. A polêmica teve início no domingo passado, quando o jornal “Folha de S.Paulo” revelou que livros, aprovados pelo Ministério da Educação (MEC), criticam o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e elogiam a administração petista de Luiz Inácio Lula da Silva.

Como se existisse imparcialidade na história, o assunto gerou polêmica. A neutralidade, no entanto, de professores desta disciplina, cada qual inserido em seu tempo, alguns militantes em lutas políticas, é ilusão, até porque história não é ciência exata. Historiadores certamente contarão o mesmo fato de formas distintas. Difícil mensurar o impacto que isto terá na formação político-ideológica do aluno. O papel do livro de história não é ser tendencioso para lado A ou B. Mas será que o jovem de hoje, do mundo moderno e digital, se “catequiza” pelo que lê nos livros didáticos?

As obras, “História e Vida Integrada” e “História em Documento”, são destinadas aos alunos do 9º ano do ensino fundamental, a antiga 8º série. O primeiro é da Editora Ática, com autoria dos irmãos Nelson Piletti e Cládino Piletti, ano 2008; o segundo foi escrito por Joelza Ester Rodrigues, da Editora FTD, editado em 2007. As obras foram aprovadas pelo MEC em 2009, com permanência prevista até dezembro de 2012. À época, o ministro da Educação, Fernando Haddad, disse que os livros eram imparciais e que tinham passado por seleção rigorosa.

O capítulo 19 do “História e Vida Integrada” faz análise do governo FHC (dos dois mandatos, 1995 a 2002) e da administração de Lula (primeiro mandato, 2003 a 2006, e dos primeiros dois anos do segundo mandato, 2007 e 2008). As críticas ao FHC giram em torno do apagão, da crise cambial e das privatizações. O item II, que trata de sua reeleição, diz que houve compra de votos no Congresso para a aprovação de emendas. Consta no item que o projeto de FHC para o Brasil não foi concluído. Há um afago: algumas melhorias na educação e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os elogios a Lula ficam por conta da criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o que o livro chama de inovação, “um novo estilo de governar.” O mensalão é abordado junto com projetos positivos do governo. Já a posse de Lula (no primeiro mandato) é chamada de “festa popular.” À “Folha”, Cláudio Piletti assumiu que o livro é tendencioso. Ele disse que seu irmão, Nelson Piletti, autor desta parte da obra, tem tendência pró-Lula. 

No livro “História em Documentos”, Joelza Ester escreve que FHC é aliado de políticos conservadores das elites e que esses políticos deram sustentação à ditadura militar. A reeleição do tucano em 1998 foi, segundo o livro, devido a essa aliança e ao sucesso do Plano Real. Sobre o PT de Lula, a autora diz que o partido iniciou a luta contra a ditadura e chama de concessões a aliança com partidos adversários. Ao jornal paulista, Joelza declarou ter sido imparcial.

A historiadora Janaína Cordeiro, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), avalia que as análises historiográficas inevitavelmente refletem nas opiniões e na cultura política do grupo ao qual o profissional está inserido. Segundo ela, isso pode ser verificado em todos os livros didáticos. “Um exemplo: como explicar que livros adotados em alguns colégios militares do País ainda hoje tratem o golpe civil-militar ocorrido em 1964 como uma revolução democrática? E tantos outros adotados pelo MEC dediquem tão pouco espaço aos movimentos sociais que colaboraram para a sustentação da ditadura e tanto espaço à resistência?”

Janaina acredita que os autores dos livros “História e Vida Integrada” e “História em Documento” quiseram analisar algumas diferenças entre os dois governos. “Não tive acesso aos livros, mas pelo que li na reportagem da “Folha” tratam-se de análises. Acho que o que se perde de vista são as inúmeras semelhanças e continuidades entre os oito anos do governo tucano e os oito do petista. Para melhor compreendermos nosso tempo presente, é preciso pensar os últimos 16 anos a partir do aspecto das continuidades.”

Para o historiador e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Nasr Chaul, os livros didáticos formam mentalidades, gerações. Por isso, quanto mais isentos, melhores, o que contribui com a democracia. Chaul acredita que o governo Lula não precisa fazer propagandas dos seus feitos em livros escolares. “Este governo deu certo por vários motivos. Não precisa disso. Outra coisa: história não se faz no calor da hora. É preciso maturar o tempo. Se a história da anistia tivesse sido escrita em tempo real, talvez hoje muita coisa não tivesse tanta importância. Esse negócio de anjos e demônios governamentais também não existe mais. Já foi.”

O historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Marco Antonio Villa considera grave a distribuição desses livros. Para ele, é propaganda pura do PT e lembra o Departamento de Imprensa (DIP, órgão coercitivo de liberdade de expressão, criado no governo de Getúlio Vargas) do Estado Novo. “A pergunta que me faço é a seguinte: para que crianças do 9º ano, de cerca de 10 anos, precisam saber de doutrinas políticas? É propaganda.”

O posicionamento do historiador pode, segundo Villa, influenciar no amadurecimento da ideologia política do aluno e também na escolha do voto. “É tentativa clara de influência político-partidária.” Segundo Villa, não é a primeira vez que casos como esse acontecem. Ele conta que há cerca de quatro anos, o vestibular da Universidade Federal do ABC, em São Paulo, trouxe questões que faziam propagandas claras ao governo Lula. “Tinha até o logotipo do governo nas provas. A resposta certa, naturalmente, era a que escolhesse o governo petista.”

Para o historiador, não é papel do livro de história criticar ou elogiar governos. Ele sugere o significado dos feriados nacionais em vez de impor posicionamentos políticos-partidários. “Os professores passam os olhos muito rápido nos livros. Não percebem isso. O livro chega, é uma imposição do governo. Fazer propagandas em livros didáticos é ilegítimo, ilegal e intolerável. Lembra o regime totalitário. E isso só vai parar, se parar, graças as denúncias que aparecem.”

Leitura do livro didático tem pouco impacto

Doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP), o historiador e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Noé Freire Sandes diz que embora não seja possível prever a projeção que os elogios ao governo Lula e as críticas ao governo de FHC nos livros didáticos do 9º ano terão, acredita não haverá impacto na formação da ideologia política do aluno. De acordo com ele, por ser o livro didático um instrumento de síntese, a tendência é que os alunos não façam juízo de valor apenas pelo que leem.

“As discussões em sala de aula contam muito mais, e quanto a isto posso dizer que não há neutralidade, mas temos o compromisso ético de não influenciar na formação do aluno; pesa as propagandas, o excesso de imagem, o slogan do governo, tudo isso fica na cabeça da criança. Já a leitura [do livro] é restrita, rápida. Eu não retiro seu peso, porém acho que é menor.” Para Noé, o livro didático deveria evitar adentrar no campo do juízo de valor. Segundo ele, todo discurso histórico é político; por isso, o Ministério da Educação (MEC) e a Comissão que aprova as obras deveriam estar mais atentos.

Para o professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutor em História Ademir Luiz, a força da comunicação de massa no Brasil, sobretudo a TV, é maior que a de um livro didático. Por isso, tem dúvidas de que o caso em questão seja uma ameaça para a democracia. Enfatiza, todavia, que não é correto subestimar. “Todo projeto de reescrita da História a partir de tendências ideológicas é perigoso, mesmo que seja em longo prazo. George Orwell produziu o melhor retrato literário para esse cenário no livro ‘1984’”.

Ademir Luiz cita o jornalista Ali Kamel que vem discutido há algum tempo a militância e simpatia pela esquerda da maioria dos autores de livros didáticos brasileiros. De acordo com o historiador, a tendência de usar dois pesos e duas medidas para julgar casos semelhantes é reflexo dessa realidade no Brasil. “É um pouco a ideia maquiavélica de que os fins justificam os meios. Partem do princípio de que se o governo Lula errou, foi por um bem maior e, portanto, o erro deve ser esquecido.” Na opinião de Ademir, o MEC, em tese, proíbe doutrinação política, mas na disciplina de História é muito fácil inserir ideologia na forma de informação. Até porque, diz ele, “o corpo de notáveis que julga o conteúdo dos livros, via de regra, compartilha ideais semelhantes com os autores.” (M.A.)

Haddad deve ir ao Senado

O ministro da Educação, Fernando Haddad, deve comparecer ao Senado nesta semana para explicar a aprovação dos livros didáticos que criticam a gestão FHC e elogiam a administração de Lula. A solicitação foi requerida pelo senador goiano Cyro Miranda (PSDB) à Comissão da Educação na terça-feira, 3, e aceita.

De acordo com Cyro, o PSDB, que ainda não teve acesso aos livros, vai entrar com ação pedindo a suspensão das obras. “Vamos atrás dos livros e dos donos das editoras que descumpriram a lei. Esta prática de ensino é criminosa. Não queremos tendência para lado nenhum. Elogiar ou criticar políticos em livros didáticos não é o fórum. É mais uma prova de que o PT passa por cima de tudo em nome dos seus objetivos.” (M.A.)