Um ambiente sem consenso
Lourdes de Souza
Código Florestal divide opiniões e acirra disputa entre ambientalistas e produtores rurais
A falta de consenso entre produtores rurais e ambientalistas foi acirrada com a aprovação do novo Código Florestal pela Câmara dos Deputados na quarta-feira, 25. O que era para ser uma discussão sobre um marco legal para o manejo do solo e preservação do meio ambiente ganhou contornos de disputa política.
Mas o debate não está centralizado em governo e oposição. Líderes de classe, especialistas e produtores rurais em Goiás também entram na discussão, que está longe de chegar a um ponto final.
Não era para menos. As regras para a preservação ambiental em propriedade rurais não entravam na pauta do legislativo há 45 anos. Desde que o atual código foi criado em 1965, as alterações foram feitas por emendas constitucionais, decretos e resoluções.
A aprovação do texto foi esperada com muita ansiedade pelos produtores rurais. Para o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), José Mário Schreiner, o posicionamento favorável da Câmara dos Deputados permite que o setor rural tenha segurança jurídica e possa produzir alimentos sem estar na marginalidade.
Do outro lado, a Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Estado de Goiás (Fetaeg) avalia que as propostas de redução das áreas de preservação e a anistia dos desmatamentos são um retrocesso para o país. Em nota, a assessoria de imprensa da entidade, diz que o texto incentiva a degradação numa época em que o Brasil deveria ampliar as formas de coibir a destruição ambiental.
Desde que o texto do deputado Aldo Rebelo (PcdoB/SP), relator do projeto de Lei 1876/99, que propõe a atualização do Código Florestal Brasileiro, foi aprovado por 410 parlamentares, a troca de acusações e ameaças tomou o lugar do foco central, que é encontrar um ponto de equilíbrio que permita o desenvolvimento do agronegócio e a defesa do patrimônio ambiental.
Alterações propostas ao projeto original e a emenda 164, apresentada pelo deputado Paulo Piau (PMDB-MG), estão no centro da discórdia. O texto da emenda, que dividiu a base governista, consolida a manutenção de atividades agrícolas nas Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e autoriza os Estados a participarem da regularização ambiental.
O documento também anistia os produtores rurais que desmataram até julho de 2008. Assim, quem aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ficará livre das multas do período.
Schreiner diz que a manutenção das atividades agropecuárias que já estão consolidadas em APPs levou em consideração a história e peculiaridade da produção agrícola brasileira, que em muitos estados, como Bahia, acontecem nas encostas de morros desde o descobrimento do país.
Em relação a Goiás, a medida liberará os produtores rurais, que abriram suas áreas antes de 1989, quando a legislação ainda não previa a exigência da averbação da Reserva Legal de 20% para o Estado, de fazer o reflorestamento e poderão continuar com as plantações mesmo nas áreas de preservação.
Os produtores que desmataram entre 1989 e julho de 2008, quando a exigência de Reserva Legal passou a vigorar, vão poder continuar com suas atividades. Mas deverão recompor ou compensar área desmatada, com o mesmo bioma. Quem aderir ao programa de reflorestamento ficará livre das atuações aplicadas nesses anos.
Para quem desmatou depois de 22 de julho de 2008, serão punidos pela legislação com multas, embargo e a própria obrigação de retirada da atividade produtiva das áreas não permitidas pela lei. Também estão obrigados a realizar a recomposição das áreas que foram plantadas.
O doutor em Geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás (UFG), Manoel Calaça, avalia com receio a flexibilização da lei que abre espaço para a redução das áreas de preservação. De acordo com ele, o projeto em análise estimula a expansão da produção agrícola e não traz benefício para o Cerrado.
Com a redução das áreas de preservação permanente, principalmente nas encostas, a previsão é de que 20% de novas áreas serão incorporadas ao agronegócio. No Brasil, a previsão do Ministério do Meio Ambiente é que a medida deixará 15 milhões de hectares, o equivalente ao território do Acre, sem reflorestamento.
Com a isenção da reserva legal para os quatro módulos, que inclui pequenos proprietários de terrenos de 20 a 400 hectares, Goiás não precisará recompor 4 milhões de hectares. Segundo o presidente da Faeg, isso evita a perda desta área produtiva.
No entanto, Calaça diz que a produção pode ser ampliada somente com a aplicação de técnicas mais apuradas e tecnologias, como o melhoramento genético das espécies, a rotação e adensamento de culturas. Em propriedades do Mato Grosso, o uso da tecnologia possibilitou o aumento de 50% na produção de algodão sem necessidade de novas terras.
Segundo Calaça, existe uma pressão sobre as áreas de preservação no Cerrado e a tendência é que o bioma se reduza mais. Em Goiás, por exemplo, ele diz que a produção de cana-de-açúcar já avança na região do Vale do Araguaia e, com a manutenção das áreas às margens do rio e a recomposição de 15 metros, em breve a alcançará o vale, ampliando o assoreamento do rio Araguaia.
Crítico da anistia para quem desmatou, Calaça diz que o projeto estimula os crimes ambientais. "O documento atual, principalmente em relação às reservas legais, vem atender a demanda de um segmento único, o dos produtores rurais".
Em contraposição, o presidente da Faeg diz que o novo Código Florestal é um reconhecimento ao trabalho prestado pelo trabalhador rural ao Brasil. "Querendo ou não, somos nós, os produtores rurais, que sustentamos o PIB deste país. Não somos vilões. Ninguém mais que os produtores querem preservar o meio ambiente."
Segundo Schreiner, o documento traz tranquilidade para o setor rural, que agora terá um marco regulatório coerente. Ele diz que desde a década de 60, o atual Código Florestal teve mais de 10 mil mudanças. "Isso que é insegurança".
Independência
No eixo central da briga entre executivo e legislativo, a Emenda 164 estipula independência estadual para regular as APPs. Assim, os Estados ficam livres para decidir quais atividades produtivas desenvolvidas devem ou não ser consolidadas.
Para o presidente da Faeg, a emenda é a principal conquista do setor rural. Schreiner defende que cada estado deve ter legislações concorrentes de acordo com sua diversidade. O governo federal defende que a definição das áreas consolidadas, que envolve os produtores classificados no segundo grupo, seja feita pela União.
De acordo com Schreiner, se for necessário um decreto presidencial para definir quais atividades devem ou não ser mantidas no estado, estão colocando em risco quase 4 milhões de hectares produtivos goianos.
Do outro lado, o doutor em Geografia Manoel Calaça diz que ao tentar transferir para os governos estaduais a competência para legislar sobre as APPs, o texto comete outro erro. Nos estados, o especialista considera que as bancadas do legislativo são mais suscetíveis às pressões dos setores produtivos e também reitera que na estadual o poder de fiscalização é muito inferior ao federal. "É um equívoco considerar o problema ambiental como adversário do setor econômico".
Ele reforça que no Cerrado, por exemplo, nascem todas as bacias hidrográficas e preservar esses recursos é essencial. "Se houver leis diferenciadas como fica o rio que corta vários Estados?"
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) tem várias questões sobre o Cerrado. O bioma é o tema do encontro nacional da mais importante instituição de pesquisa do país, que acontece agora em julho em Goiânia. Apesar disso, a SBPC nunca foi ouvida. "Ainda há muita coisa obscura e os debates não foram suficientes", diz o professor da UFG.
Setor rural ameaça ir para as ruas
O presidente da Faeg, José Mário Schreiner, diz que o setor ruralista está mobilizando pela aprovação definitiva do Código Florestal e que, após o avanço conquistado na Câmara dos Deputados, retrocessos não serão aceitos. Segundo ele, os produtores rurais aprovam o documento apresentado pelo relator do Projeto de Lei, Aldo Rebelo (PcdoB/SP) e estão dispostos a ir para as ruas para protestar caso a ameaça de veto presidencial aconteça.
Schreiner diz que os produtores rurais estão mobilizados há dois anos, período no qual discutiram nos municípios brasileiros, o projeto do novo Código Florestal. Uma prova da articulação do setor, segundo ele, é a vitória expressiva alcançada na votação, com 474 deputados favoráveis.
O presidente da Faeg comenta que nunca viu o setor tão envolvido como agora. "Vamos continuar acompanhando a tramitação no Senado. Estamos conquistando uma segurança jurídica e não descartamos ir para as ruas e fechar as estradas brasileiras se não formos atendidos", diz ele ao reforçar que o país pode reviver, em escala maior, o protesto feito pelos produtores rurais, em 2006, que criticavam a política econômico do governo e reivindicavam refinanciamento das dívidas.
A presidente Dilma Rousseff anunciou que pode vetar os pontos que considerar contraditórios, principalmente a emenda 164. A proposta está no Senado e, caso seja aprovada sem modificações, seguirá para a sanção presidencial. Se houver mudanças, o projeto retorna para Câmara para nova apreciação.
Margem de rios
O Código diz que os pequenos produtores que já desmataram suas APPs nas margens, poderão recompor a área em 15 metros a partir do rio. Os demais devem recompor em 30 metros.
Consolidação de cultivos em APPs
Permite que algumas plantações, como cultivo de maçã ou plantio de café, serão consolidadas nas Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Isenção aos pequenos
O novo Código desobriga os pequenos produtores de recompor a reserva legal em propriedades de até quatro módulos fiscais, de 40 a 100 hectares, dependendo da região.
Anistia
O texto principal do Código Florestal trata da anistia para quem desmatou até julho de 2008. O produtor que cumprir o Programa de Regularização Ambiental (PRA) ganhará a anistia, e quem não aderir terá que pagar as multas.
Reserva Legal
O texto permite também que os proprietários possam compensar o desmatamento em áreas de reserva legal em outros Estados, desde que no mesmo bioma.
Emenda 164
Trata-se de um dos fatos que mais geraram polêmica entre o governo federal e os deputados. A emenda trata da PRA, estipulando que a União traçaria regras gerais e os estados definiriam, de fato, o que pode ser cultivado nas APPs. O governo é contra porque quer a exclusividade para definir as atividades permitidas em APPs.
Código Florestal
Legislação que prevê, por exemplo, o volume de área que deve ser preservada pelos produtores, como as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a reserva legal.
Segurança jurídica e distorções
Ordem dos Advogados argumenta que um código florestal era imprescindível para o país, que tem uma legislação vasta, esparsa e prejudicialA aprovação do Código Florestal é vista como uma segurança jurídica pelo presidente da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO), Rodrigo Silveira Costa. Segundo ele, um código era imprescindível para o país, onde há legislação ambiental vasta e esparsa, o que prejudica o entendimento das regras e a fiscalização.
Costa diz que, diante da colcha de retalhos de decretos e resoluções, nem mesmo os aplicadores das normas, como os órgãos ambientais, conhecem a legislação. Para ele, nesse ponto, a junção das regras em um código é muito positivo. "Mas é difícil analisar se o documento em análise no Congresso é simplesmente bom ou ruim".
O advogado acredita que do ponto de vista da proteção ambiental, o código é um retrocesso porque, por exemplo, tem o perdão de multas e diminui a faixa das Áreas de Preservação Permanente (APP). Ao citar o ditado "o tempo rege o ato", ele crítica a anistia prevista aos desmatadores. "Se o legislador traz uma nova lei, ele pode rever uma lei passada. Na época em que foram multados, os produtores descumpriram a lei. Não de pode voltar atrás, a multa é um ato jurídico perfeito".
Costa diz que, caso a anistia seja aprovada no Senado, a OAB já manifestou que pode entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a medida. "Quem desmatou vai ser perdoado? Isso é uma deturpação de valores no país, que acaba prejudicando o bom cumpridor da lei".
Para o presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-GO, a legislação brasileira é evoluída no quesito preservação tanto que querem afrouxá-la. "A lei é protetiva e precisava apenas ser reorganizada devido ao seu grande volume".
Nos moldes atuais, ele diz que o código se presta a tirar da ilegalidade os produtores rurais propondo um novo paradigma que se pretende cumprir pelo setor agropecuário. "Vamos fazer um código realizável agora, mas daqui a 20 anos será que não vamos querer reduzir mais? Esse é o medo", comenta o advogado que defende um código que agregasse toda a questão ambiental e não só a florestal.
Falta de fiscalização
Em 2011, Ano Internacional das Florestas, lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU), um ponto de convergência entre todos os lados é a necessidade de se reforçar a fiscalização.
O excesso de leis e a vigilância frouxa são regras no país, segundo o presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB, Rodrigo Silveira Costa. Prova disso é a pesquisa da Fundação SOS Mata Atlântica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que apontou que a supressão da floresta nativa é contínua.
Na sexta, 27, Dia Nacional da Mata Atlântica, o país registrou perdas de 31,2 hectares do bioma nos últimos dois anos (2008 a 2010). Goiás foi o sétimo no ranking de desmatamento, com uma área de 320 hectares. Os dados são um alerta para o estabelecimento de políticas públicas que incentivem a conservação e a restauração deste e de outros biomas.
Para o professor Manoel Calaça, um dos principais vilões da preservação ambiental é a falta de fiscalização. Ele diz que o país não tem estrutura e profissionais para verificar o cumprimento da lei e nem punir os desvios e isso não é diferente na região do Cerrado.
Costa diz que nem o governo consegue cumprir a lei. "O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) está entre os principais multados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis). O governo federal não consegue cumprir a lei e nem consegue geri-la).
O presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de goiás (Faeg), José Mário Schreiner, diz que o Código Florestal prevê uma legislação mais severa, mas pode ser comprometido senão houver uma fiscalização adequada. "Precisamos de uma fiscalização rigorosa e séria, sem ameaças e extorsões como acontece hoje".
Já para Calaça, se no país hoje se fala que a fiscalização hoje é ruim, a tendência é de que fique pior se a competência foi transferida para os Estados, que possuem estrutura menor.