Unidos contra o lixo

de segurança 100%”
Márcia Abreu
Não há nenhum comunicado à Prefeitura de Abadia de Goiás ou à direção do Parque Estadual Telma Ortegal (espaço onde se encontram os lixos radioativos do acidente com o césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987) de que a cidade é cotada para receber os rejeitos de baixa e média intensidade das usinas nucleares Angra 1 e 2. Mas a especulação que surgiu há quase um mês tem gerado polêmica, manifestação e dividido opiniões conforme vem mostrando o Jornal Opção.
Mestres e doutores da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) foram ouvidos pela reportagem. A academia é contra o armazenamento do lixo em Abadia. Considera que transportar os rejeitos do Rio de Janeiro a Goiás é sinal de pouca sensatez. É preciso buscar alternativas.
As substâncias produzidas pelas duas usinas nucleares brasileiras precisam ser guardadas. A inexistência de depósito definitivo não é um problema do Estado do Rio de Janeiro, ao contrário do que alguns pensam. O impasse é do Brasil, portanto, de Goiás também.
Na opinião da academia, o Estado não pode se negar a receber o lixo apenas porque não o produziu. A discussão vai além, passando por questões técnicas, estruturais e por todos os envolvidos, entre eles, sociedade, Estado do Rio, de Goiás e governo federal.
Atualmente, os rejeitos radioativos de média e baixa intensidade produzidos por Angra 1 e 2 são armazenados na Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA) em Itaorna, ilha que abriga as usinas; já as substâncias de alta radioatividade (combustível nuclear) são guardadas na própria geradora de energia.
Como o Plano Nacional de Energia (PNE) visa expandir a oferta de energia até 2030, criando pelo menos mais oito usinas nucleares no Brasil, o objetivo é construir depósitos definitivos (até 2018) para estocar os lixos radioativos das usinas brasileiras.
O Parque Telma Ortegal foi lembrado para se tornar um depósito definitivo porque abriga os rejeitos do césio. Embora de periculosidade diferentes (o lixo da usina é mais perigoso que o do acidente radiativo), profissionais da engenharia nuclear acreditam que pode-se investir na estrutura do Parque, aperfeiçoando-a, e transformando-o nos depósitos necessários.
De acordo com o pró-reitor de Administração e Finanças da UFG, Orlando Afonso Valle do Amaral, que é físico, em vários países a solução para os lixos nucleares é provisória. Isso acontece porque os rejeitos têm duração longa, de milhares de anos. Por esse motivo algumas nações os mantêm em minas subterrâneas, minas de sal, em desertos ou regiões com baixa densidade populacional.
Ainda assim há riscos, diz o pró-reitor. “Mesmo nesses locais não há garantia de que a segurança é 100%. Esses abrigos são vulneráveis a fenômeno extremo.” Recentemente o Japão foi vítima de grave acidente nuclear. Mesmo sendo fiel a protocolos rígidos de segurança nessa área, o país foi vítima de uma conjunção de problemas não previstos: a combinação de terremoto com tsunami que provocou a destruição de várias cidades japonesas e a morte de centenas de pessoas. O fato comprova a vulnerabilidade dos depósitos.
Questão delicada
Na opinião de Orlando Afonso, os lixos de Angra 1 e 2 deveriam ser abrigados próximo à região onde as usinas estão instaladas. “Não se pode partir do princípio de que porque Goiás tem um depósito esse lixo deve ser levado para lá. A questão é muito mais delicada”, avalia o pró-reitor. A decisão tem de ser consensual entre os atores. Se a solução for levar o lixo para Goiás e havendo compensações (royalties) ela deve ser levada em consideração.
Não se pode negar, todavia, que se os rejeitos de Angra forem para Goiás eles comprometerão de certa forma a segurança de pessoas por milhares de anos. A idade média dessas substâncias é muito maior que a dos objetos contaminados pelo césio-137. “A discussão é mais complexa do que uma pessoa ou entidade sugerir que o lixo vá para Goiás”, analisa o pró-reitor Orlando Afonso.
O professor da UFG Jesiel Freitas Carvalho, doutor em física pela Universidade de São Paulo (USP), também compara a diferença que há entre lixo nuclear e rejeitos do césio 137. Segundo ele, usinas nucleares produzem volume elevado de materiais com maior grau de radioatividade. “É preciso estocar isso em algum lugar. Esse debate vem de algum tempo, não é de hoje. O Brasil precisa se basear nas experiências internacionais para cuidar dos seus rejeitos.”
O físico não vê razão técnica e econômica para levar o lixo de Angra para Goiás, a não ser pelo o fato de haver especialistas cuidando do material radioativo produzido pelo césio. Mesmo assim há que se tomar cuidados, como com a característica geofísica. Na opinião do professor, o depósito de Abadia é artificial (refere-se à proximidade com a rodovia GO-060).
“Para se ter uma ideia em outros países eles estocam os lixos nucleares perto de cavernas. No caso de Goiás a população de Abadia é crescente. Não vejo aspecto técnico para depositar esse material de altíssima periculosidade lá. Não traz benefício para ninguém, só riscos”, diz Jesiel Freitas. Na opinião do professor, a proposta é pouca sensata já que existem alternativas mais seguras.
Jesiel elogia o trabalho do CRCN, que é o único depósito definitivo no Brasil, “São competentes e sérios. Porém armazenar os lixos vindos de Angra lá é completamente diferente.” Para o físico, não é preciso conhecimento técnico para compreender que a instalação de um repositório com lixo de alto risco em um lugar cuja localização geográfica não é favorável não é a melhor opção. “Por isso as pessoas em geral têm sido tão enfáticas em seus posicionamentos.”
Histórico
Para o pró-reitor Orlando Afonso, o problema do lixo nuclear no Brasil é pequeno porque a matriz energética do país é a hídrica. Apenas 3% da população brasileira consome energia nuclear. Com a criação de Angra 3, esse número deve subir para 5%.
Todas as energias apresentam alguma forma de perigo, seja ela hidroelétrica, termoelétrica ou nuclear. Embora as usinas de Angra não produzam lixo em grande volume, seus rejeitos têm potencial perigoso.
Os depósitos de Goiás, motivados pelo acidente com o césio 137, foram construídos seguindo normas e seguranças internacionais. O Estado conseguiu uma solução para o seu problema. É isso que o Rio de Janeiro tem de buscar, segundo o pró-reitor da UFG. “Goiás teve a infelicidade de sofrer um acidente radioativo e encontrou uma solução muito apropriada. O Rio tem de se espelhar”, declara o pró-reitor.
Estigma reforçado
“A transferência dos lixos nucleares de Angra 1 e 2 para Abadia de Goiás só reforça o estigma que a cidade tem. Abadia é campesina, cria gado, tira leite. Tem um comércio aquecido que pode ser prejudicado.” A declaração é do professor de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) Luiz Eduardo Jorge.
Eduardo Jorge, que também é cineasta, diretor de mais de 18 filmes e ganhador de 54 prêmios entre festivais nacionais e internacionais, foi premiado recentemente no Rio de Janeiro com o filme “Césio 137: o brilho da morte”. Em um vídeo de 24 minutos, o antropólogo conta a história do maior acidente radioativo do mundo. A película concorreu com 34 produções de diversos países.
Para o antropólogo e doutor em cinema pela Universidade de São Paulo (USP), é preciso que se encontre um local em Angra ou em outros municípios do Rio de Janeiro para armazenar os lixos nucleares. Na opinião dele, é um absurdo transportar os rejeitos por mais de mil quilômetros.
Luiz Eduardo Jorge, que se diz radicalmente contra a energia nuclear, acredita que o temor dos abadienses quanto ao lixo de Angra é reflexo do estigma que a cidade tem. “O município ficou com uma marca carimbada. Isso desconstitui o espaço. As pessoas ficam temerosas, estigmatizadas, a especulação imobiliária vai lá para baixo.”
De acordo com o professor, enquanto a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) diz que os rejeitos do Césio estão bem guardados e que não causam riscos à sociedade, moradores de Chernobyl na Ucrânia (cidade onde ocorreu um dos maiores acidentes em usina nuclear do mundo em 1986) fazem manifesto. “Há poucos dias ouve uma manifestação em Chernobyl por conta do acidente ocorrido na década de 1980. Já aqui é tão seguro. Olha o contraste.”
População de Abadia faz manifestação
Pelo menos 100 pessoas demarcavam espaço na manhã de quarta-feira, 8, na porta da Prefeitura de Abadia de Goiás quando o prefeito Valdeci Mendonça (PMDB) conversava com a reportagem. “Minha sala está cheia de gente. Já me pediram até pelo amor de Deus para eu não deixar que esse lixo [das usinas de Angra dos Reis] venha”, relatou o prefeito que é contra a ideia de aumentar os depósitos do Parque Estadual Telma Ortegal.
Segundo Valdeci, royalties nenhum pagam o estigma e o preconceito que os abadienses sofreram com o césio 137. Ele lembra que até pouco tempo as pessoas se referiam a ele como o prefeito da cidade do césio. “Já nos trataram como se estivéssemos contaminados.”
Dados do cartório de Abadia mostram que depois das especulações sobre o lixo nuclear o mercado imobiliário da cidade esfriou. A prefeitura não recebeu nenhum comunicado de que a cidade estaria sendo cotada para receber o lixo.
“Sabemos que o governo federal determinou a criação de novas usinas e que por isso a CNEN está fazendo seminários em todo o Brasil. O lixo nuclear precisa ser guardado e Abadia foi lembrada porque abriga rejeitos radioativos”, conta o prefeito.
Na segunda-feira, 6, moradores de Abadia iniciaram uma manifestação com apoio de vereadores em frente à Câmara Municipal e finalizaram-na na Praça da Matriz reunindo mais de 500 assinaturas contrárias ao recebimento do lixo de Angra 1 e 2.
De acordo com o presidente da Casa, Luiz Ângelo de Urzêda (PSDB), o Legislativo é contra a construção de novos depósitos em Abadia. Para o tucano, o lixo acarreta problema e a cidade quer solução. “Queremos progresso e não problema. Nossa cidade é limpa, bem arrumada, está em franco desenvolvimento. Não queremos dinheiro, aliás, a quantia [R$ 19 mil] que a cidade recebe hoje é uma vergonha.”
O vereador peemedebista Professor Nivaldo, também contra o armazenamento do lixo nuclear em Abadia, analisa que o principal problema para o município seria com o preconceito. “Esse lixo desvalorizaria o comércio. O Parque Terma Ortegal é seguro, mas e se acontece um fenômeno natural como um terremoto? E se um meteoro cai lá? O município gerador do problema [Rio de Janeiro] é que tem que ficar com ele”, analisa.
O vereador criou um projeto de lei que proíbe o recebimento de lixos nucleares nos depósitos de Abadia de Goiás. O projeto será apresentado na Câmara da cidade na terça-feira, 14.
Estado
O secretário estadual do Meio Ambiente, Leonardo Vilela (PSDB), afirma que o governador Marconi Perillo (PSDB) já tomou a decisão de não receber o lixo de Angra. Os depósitos foram construídos especialmente para abrigar os rejeitos do césio e não receberão, segundo o secretário, substâncias nucleares.
“Sei da segurança dos nossos depósitos que têm profissionais da mais alta competência. Estive lá há pouco tempo [menos de dois meses]. Mas o nosso posicionamento é claro: Goiás não aceitará esses lixos. Não tem sentido nenhum transportar materiais tão perigosos por tamanha distância. Quando o acidente com o césio aconteceu não exportamos os nossos rejeitos. Portanto, que façam o mesmo”, diz o secretário.
Critérios: Abadia não se encaixa no geográfico
Existem dezenas de critérios que o mundo usa para resolver o problema de lixo nuclear. De acordo com o coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN), Leonardo Bastos Lages, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) está considerando-os. Um dos critérios analisados é a proximidade geográfica dos locais produtores de rejeitos com os depósitos. Nesse quesito Abadia não se encaixa porque fica a mais de mil quilômetros de distância das usinas de Angra 1 e 2.
Um segundo critério é a competência desenvolvida no depósito e a infraestrutura disponível em termos, entre outros, de equipamentos e pessoas. Já nisso Abadia é lembrada porque abriga o único repositório definitivo de rejeitos da América Latina e já faz isso há 23 anos. No caso de outra cidade ser escolhida, os profissionais do novo depósito deverão aprender com o CRCN atividades como manuseio de laboratórios, operacionalização de equipamentos e monitoramento ambiental.
“Temos experiência em definição de locais de coleta, pontos de amostragem, periodicidade de coleta, análise e geração e intercomparação de resultados. Tudo isso só Abadia dispõe hoje”, explica Leonardo. Existem outros critérios como densidade populacional, vias de acesso e formação geomorfológica.
Na opinião do coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN), Leonardo Bastos Lages, autoridades públicas e demais interessados não de Goiás mas de qualquer parte do Brasil poderão no momento oportuno visitar Angra dos Reis e verificar os benefícios que a Eletronuclear ofereceu àquela comunidade.
Visitar a mina de urânio que o País opera hoje no sertão da Bahia, em Caetité, também é uma alternativa. Saber do cidadão e dos gestores públicos da cidade quais foram os benefícios decorrentes daquela mina. Segundo Leonardo, a indústria nuclear brasileira que explora esse urânio criou casa de cultura, museu, sinalizações na cidade, obras em hospitais e escolas, educação ambiental e reflorestamento da região.
“Existe uma série de atividades que visam amenizar, compensar aquele impacto. Quantas cidades brasileiras cuidam 100% dos seus rejeitos domésticos? Nós estamos discutindo uma área que cuida de 100% dos rejeitos, que são inventariados, embalados e armazenados em locais com a maior segurança possível”, diz o coordenador.
Carga emocional
O coordenador afirma não ter dúvidas de que a carga emocional da população de Goiás e de Abadia é exacerbada do acidente que, segundo ele, traumatizou e gerou prejuízos. “Mesmo tecnicamente temos que dar um peso considerável a esse fator emocional.”
De acordo com o coordenador, as autoridades das localidades candidatas certamente irão ao Parque Telma Ortegal conhecer a segurança, ver como funciona, se os profissionais trabalham 24 horas por dia, se tem alguém com sequelas, se há nível de radiação preocupante e se é possível afirmar que o reservatório é o local onde o nível de radiação é o menor do Estado de Goiás.
“Podemos dizer que é sim o local mais seguro de Goiás para efeito de irradiação porque é o único com malha de monitoramento funcionando há 23 anos.” Leonardo diz que ele consegue discutir a questão em plano técnico e menos emocional. “A tendência é adicionar o aspecto emocional ao caso, o que é absolutamente explicável. Cada um na sua função. Por ora a minha é técnica. Em outro momento de discussão, quer seja em relação a Abadia ou a outra localidade eu gostaria de participar do debate.”
Questão técnica passa por cadeia produtiva
Encontrar um local apropriado para depositar os rejeitos das usinas nucleares brasileiras é assunto nacional. O problema não é só do Estado do Rio de Janeiro, mas da Federação. Essa é a primeira questão para ser pensada, segundo o coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN), Leonardo Bastos Lage.
Um segundo tema é a cadeia produtiva. “Quando se aborda o Brasil de maneira nacional não se pensa que quem gerou, guarda; quem precisa, produz. Não é assim o espírito federativo”, diz Leonardo. Ele lembra que a plataforma que extrai o combustível usado em Goiás pode estar no litoral do Rio de Janeiro, a refinaria em São Paulo e o oleoduto em Senador Canedo.
Angra dos Reis não é a única a se beneficiar com as aplicações da energia nuclear. Os Estados as utilizam na medicina com o tratamento oncológico, na indústria, para cada latinha de cerveja ou refrigerante que se toma é utilizado um sensor para medir o enchimento da embalagem.
Segundo o coordenador do CRCN, Angra 2 não gera tantas substâncias radioativas quanta Angra 1 porque possui técnicas que reduzem drasticamente a geração de rejeitos. Combustível nuclear (varetas com pastilhas de urânio que alimentam as usinas e após sua utilização não é considerado rejeito) não entra na discussão porque deve ser armazenado de maneira específica e inclusive reutilizado no futuro.
Para tomar uma posição madura da situação é preciso se dispor de muita informação, defende Leonardo. “Se eu fosse emitir minha opinião como cidadão goiano que sou pediria tempo para entender melhor o projeto, para conhecer vertentes importantes que devem ser consideradas que são, por exemplo, a segurança, as eventuais vantagens e benefícios decorrentes do empreendimento.”
A expectativa de Comissão Nacional de Energia Nuclear é criar os depósitos definitivos até 2018. Segundo Leonardo, esse projeto tem pouca definição; aspectos, como a capacidade total dos repositórios e até que ano eles deverão abrigar as substâncias, ainda estão sendo discutidos. “Dependendo dessas questões, pode-se criar um repositório do tamanho desse que se tem aqui em Abadia com uma estrutura de concreto de 20m x 20m e seis metros de altura ou então umas dez vezes mais que isso se estiver estudando um horizonte de um século.”
Usinas de Serra da Mesa e de Belo Monte
Para se construir a usina hidrelétrica de Serra da Mesa foi necessário desapropriar proprietários e realizar uma série de melhorias na região da barragem. Mesmo assim alguns impactos socioambientais jamais serão remediados.
“São as pessoas que nasceram e tiveram suas famílias ali onde hoje é um grande lago. As atuais profundezas do lago artificial certamente foram locais onde muitos constituíram família. Esse é o custo do desenvolvimento e da intrusão humana”, diz coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN) Leonardo Bastos Lages.
As responsabilidades da obra foram discutidas com o Estado de Goiás, Ibama, Ministério Público e outras entidades federais, estaduais e municipais. Segundo Leonardo, nos municípios mais atingidos foram construídas rodovias, pontes, obras de saneamento e de atendimento à saúde, educação e segurança.
Já no caso da Usina de Belo Monte, que está sendo questionada por organizações internacionais pela possibilidade de atingir populações indígenas e ribeirinhas, o governo e o consórcio empreendedor admitem que falharam no momento em que levaram uma megaestrutura de operários, máquinas e pessoas para onde não havia infraestrutura. “Esses aspectos (segurança, saúde, lazer, educação e uma série de outras demandadas) deveriam ter sido analisados e as contas equacionadas”, conta Lage.
Tema é polêmico e há até quem concorde
A movimentação era pequena nas ruas de Abadia de Goiás na manhã ensolarada da terça-feira, 7. Diante da dificuldade de abordar pessoas, o jeito foi bater de porta em porta. Não se podia voltar para Goiânia depois de uma hora de estrada e quase duas passadas no Parque Telma Ortegal sem ouvir a população, que é diretamente atingida por abrigar próximo de suas residências objetos aparentemente simples, porém tão perigosos.
O vigilante José Ferraz, 45, foi o primeiro a ser abordado e o único a concordar com ida do lixo das usinas de Angra 1 e 2 para a Abadia. Morador da cidade há 25 anos, José trabalhou no Parque. “Ajudei lá. Isso foi alguns anos depois do acidente. Não tem perigo nenhum”.
O dinheiro dos royalties, no entanto, deve ser bem aplicado. Seu José sabe bem em quais áreas. “Na saúde e na segurança pública. Outro dia fui levar meu filho de 2 anos ao hospital, ele tinha febre de mais de 40 graus, e me pediram para retornar em dois meses. Veja se isso é possível”, conta, complementando que foi roubado duas vezes no posto de gasolina onde trabalha.
A dona de casa Maria do Socorro Silva, 44, mora há pouco tempo em Abadia, seis anos, mas o suficiente para saber que a cidade já passou momentos difíceis por estar tão perto de lixos radioativos. “Três anos trás houve uma olímpiada em um colégio aqui da cidade que foi um fracasso. Muitos pais proibiram os filhos de vir porque descobriram que Abadia era a cidade do césio”, declara a pernambucana de Petrolina.
Elenita da Mata Barroso, 76, do lar, mora há 20 anos em Abadia. De acordo com ela, as pessoas mais idosas já sofreram muito com o preconceito. Caso a cidade receba os lixos nucleares quem sofrerão serão as crianças. “Se isso acontecer nossos netos passarão pelo mesmo que passamos. Não há dinheiro que pague. O prefeito tem que buscar outros meios para aplicar verbas na melhoria da cidade.”
Para a comerciante Graça Assunção, 32, os abadienses “jogaram pedra na cruz”. Ele conta que na época do césio seu marido trabalhava em uma conhecida empresa de produtos alimentícios goianos e que um dia voltou de São Paulo com a carga completa porque ninguém queria receber os produtos de Abadia.
“Isso foi em 1986. No final da década de 1990 que foi melhorando, porque as pessoas viram que o depósito era monitorado e os profissionais capacitados”, diz a viúva, que acredita que os problemas podem se repetir com os rejeitos nucleares.
De acordo com a comerciante, há relatos de que o Parque Telma Ortegal não é 100% seguro e que alguns policiais morreram devido à radioatividade. “A gente ouve conversa aqui na cidade de que a radiação vaza lá no Parque e eles controlam. Já falaram até que policiais morrem e eles deixam a notícia por baixo dos panos.
Na tentativa de evitar o que ela chama de dose dupla de preconceito, Graça Assunção sugere alguns lugares para o lixo ser guardado. “Coloca isso no mocotó do capado (?) ou na Serra do Cachimbo.”
A especulação em torno do lixo nuclear já foi abordada até em salas de aula. De acordo com a adolescente Caren Batista, de 14 anos, o professor fez um debate em sua classe. Caren não acha certo Abadia guardar mais lixos. “Cada um tem de cuidar do seu lixo. Se vir mais, as pessoas vão ver Abadia de outro jeito [com preconceito] e muitos podem até mudar da cidade. Tem lote que valia que R$ 40 mil e agora não vale nem R$ 30 só por causa dessa notícia.”
Daniel Soares, 16, ficou sabendo da especulação durante a manifestação da população na Praça da Matriz. Ele afirma que é contra, mas que seu pai é a favor. “Meu pai já trabalhou lá [no depósito]. Segundo ele, é superseguro.”
A reportagem também passou mais de duas horas no Parque Telma Ortegal, onde constatou a organização do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN) e ouviu de funcionários que o local, uma espécie de cidade, é seguro. Uma horta com couve, alface, tomate e pimentas abastece a dispensa da CRCN.