A ‘fera’ pode ser domada

Um bicho de sete cabeças. É assim que muitos enxergam a Matemática, buscando ao máximo fugir de números e cálculos confusos, enfadonhos e que, à primeira vista, em nada servirão durante a vida. Através da etnomatemática, entretanto, é possível despertar no aluno o prazer pela matéria que irá acompanhá-lo por toda a vida. 
Principal idealizador e defensor da teoria no Brasil, o professor Ubiratan D´Ambrósio explica que a etnomatemática envolve métodos diversificados de aplicação de conteúdos bastante diferentes do tradicional. “Etno” remete justamente ao ambiente natural, social e cultural do aluno. 
“Nessa metodologia você reconhece que, desde o seu nascimento, o ser hu­mano convive com os outros. Então por que não trabalhar essas relações durante as aulas?”, questiona, apontando um preceito básico do campo de estudo, que é utilizar a bagagem cultural dos alunos como forma de assimilação do conteúdo.
Foi em meados de 1980 que D´Am­bró­sio propôs o termo de forma pioneira no país. Ele explica que antropólogos, ainda no século 19, perceberam que existiam outras maneiras de atuar nas diversas disciplinas existentes, e que não se li­mi­tavam ao teórico. 
Daí surgiram meto­do­logias mais dinâmicas, focadas no saber do aluno. E a Matemática não poderia ficar de fora.
Para o doutor em Educação pela Universi­dade de São Paulo (USP) e professor no mestrado em Educação em Ciências e Matemática do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade Federal de Goiás (UFG), Rogério Ferreira, a etnomatemática já começa a fazer parte da grade curricular de muitos cursos de licenciatura, mas ainda há muito o que evoluir, já que várias instituições ainda não a adotaram em seus currículos.
Ele explica que a etnomatemática não é uma disciplina fechada, pronta. “Na verdade, podemos destacar as principais diretrizes que podem ser utilizadas a fim de construir atividades que valorizem a realidade dos alunos e de diferentes povos”, aponta.

Práticas simples 
A primeira delas diz respeito à necessidade de o professor se tornar investigador da realidade vivida por seus alunos, e usá-la como ferramenta em sala. “É uma forma de tornar a Matemática viva, oportunizando uma efetiva leitura de mundo por parte do estudante”, explica Ferreira.
E para isso, não são necessários grandes recursos. D´Ambrósio exemplifica práticas simples do dia a dia, que se forem consideradas pelo educador na hora de transmitir o conteúdo, melhoram muito a relação das crianças com a Matemática.
“O ajudante de pedreiro pode nunca ter ido à escola, mas sabe as medidas do tijolo que deve colocar em cada parede, o quanto colocar.... Com as crianças acontece o mesmo. Elas trabalham com o dinheiro de forma natural, por exemplo, e saber usar esses conceitos em sala é o que teoriza o método”, explica.
De acordo com o precursor da etnomatemática, atualmente os professores não levam em conta o conhecimento prévio do aluno, que é seu saber cultural. “Não se pode ignorar o que as crianças sabem quando chegam à escola. Ignorar isso é jogar fora um elo entre a disciplina e a sua realidade, distanciando-a do conteúdo”, ressalta.
Além de relacionar tudo o que o aluno faz em seu dia a dia, a etnomatemática pro­põe valorizar os aspectos culturais e sociais em sala de aula. 
De acordo com Ferreira, cabe ao professor trazer para o ambiente escolar saberes de natureza matemática vindos de diferentes realidades socioculturais, visando debater sobre tais realidades e ir além do conhecimento tradicional.
“Na realidade brasileira torna-se fundamental ao professor de Matemática retratar criticamente culturas e histórias indígenas e africanas em sala de aula”, afirma, argumentando que essa pode ser uma oportunidade de colocar em prática o que é determinado pela lei nº 11645, de 2008, que torna o ensino dessas culturas obrigatório.

Outros aprendizados 
Orientados por Ferreira, Ana Paula Azevedo Moura e Luiz Fernando Ferreira Machado desenvolveram um trabalho com alunos do 8º ano do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (Cepae), da UFG. 
Nas aulas de Matemática, eles trabalharam as realidades indígenas e afro-brasileiras. Machado, que faz mestrado em Educação em Ciências e Mate­mática, conta que as atividades consistiam em enaltecer as características de cada cultura, com trabalhos manuais e pesquisas históricas.
Apesar de, à primeira vista, isso não ter nenhuma relação com o ensino de números e equações, ele explica que é exatamente esse um dos pontos da etnomatemática. “Procuramos não misturar a disciplina tradicional com os conhecimentos culturais. Queremos humanizar o aluno, dando valor a outros aprendizados e formando cidadãos”, explica.
Para Ferreira, para diminuir o medo e a fama de difícil que a disciplina possui, é preciso buscar abordagens mais humanas. “O professor precisa entender que a Matemática está constantemente atrelada à interpretação do mundo em que vivemos hoje. Sem ela, não exercemos efetivamente a cidadania.”

Fonte: Tribuna do Planalto