Depois de dois meses de constantes protestos e algumas reivindicações atendidas, as manifestações públicas que tomaram conta das ruas do Brasil deixaram pelo menos uma marca definitiva: uma população mais politizada. O saldo das mobilizações também aponta tendências, como maior articulação da sociedade para cobrar temas colocados em pauta, por meio de grupos melhor organizados e amadurecidos politicamente. Especialistas consultados pelo POPULAR acreditam que esse processo deve culminar em um ano de 2014 agitado pelas eleições e pela visibilidade internacional da Copa do Mundo, ocasiões nas quais os brasileiros pretendem insistir no aprofundamento da democracia.
Embora o ápice dos protestos tenha passado, as pessoas continuarão indo às ruas, pois se sentem fortalecidas com as vitórias obtidas. Na última semana, houve cinco manifestações em Goiânia. Todas menores que o protesto realizado no dia 20 de junho, quando cerca de 50 mil pessoas ocuparam o Centro da capital, mas ainda assim maiores e mais barulhentos que as mobilizações que estávamos acostumados a ver na cidade.
“As pessoas perceberam que têm força. Os protestos agora contam com solidariedade de outros grupos, o que fortalece ainda mais as lutas específicas”, afirma o sociólogo Nildo Viana, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Antes das manifestações que começaram em maio, normalmente havia apenas estudantes em mobilizações estudantis. O mesmo se aplicava em passeatas de professores ou profissionais de saúde. Agora o que se percebe é uma espécie de intercâmbio entre pessoas indignadas pelos mais diferentes problemas sociais, que resultam em mobilizações marcadas pela diversidade de temas e de manifestantes.
Politização
Mais que isso. Gente que antes não se interessava em política, não procurava informações e, muito menos, assistia um pronunciamento de 10 minutos da presidente da república agora acompanha atenta aos movimentos dos representantes eleitos. “A ampliação das pautas, que começaram com a questão do transporte coletivo, significam uma maior politização das pessoas. Embora nem todos tenham a maturidade política dos estudantes que lutam pelo passe livre, o fato é que a sociedade está discutindo questões políticas”, analisa Nildo Viana.
Essa politização dos brasileiros veio num momento em que iríamos mostrar um Brasil que não existe, na avaliação da socióloga e antropóloga Nágila Ibrahim El Kati, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). “O discurso e a intenção oficial era de exibirmos ao mundo um País de primeiro mundo, com padrão Fifa, assim como belos estádios e paisagens. A população mostrou que não está satisfeita em ter somente consumo e sua indignação foi transformada em protesto político, de forma multifacetada”, diz.
Amadurecimento
O amadurecimento político dos manifestantes deve culminar em grupos mais organizados, que passarão a atuar num outro nível de lutas, com pautas claras e demandas específicas, que saberão pontuar exatamente o que querem. “As pessoas foram convidadas a refletir o que estão fazendo. Estão lendo mais e pensando sobre o que querem. Os grupos vão se mobilizar em torno daquilo que pensam valer a pena, do que consideram importante”, explica o sociólogo Dijaci de Oliveira, da UFG.
Grupos se formaram sem participação de partidos políticos
07 de julho de 2013 (domingo)
A Frente de Luta Contra o Aumento - que puxou as manifestações contrárias ao reajuste da passagem de ônibus na região metropolitana de Goiânia – se retirou dos protestos, pelo menos por enquanto. Outros grupos se formaram por meio da internet e continuam realizando mobilizações, com pautas como a destinação de 10% do PIB para a educação e o mesmo porcentual à saúde.
“Tudo indica que essas demandas serão atendidas e os movimentos sociais terão de achar outras pautas”, afirma o sociólogo Dijaci de Oliveira. A novidade desses grupos está no fato deles se organizarem sem participação de partidos políticos ou sindicatos, sem passar pelos meios institucionais tradicionais. Para os representantes eleitos, o desafio é dialogar com essa nova forma de reivindicação e conseguir dar respostas efetivas.
Para Dijaci, a situação dos políticos ficará mais complicada se a população atravessar 2014 com a sensação de que os problemas não estão sendo resolvidos. “O ano que vem será decisivo”, arremata.
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Decepção e crise de representatividade
07 de julho de 2013 (domingo)
Saúde, educação, gastos públicos, corrupção e privilégios dos políticos estão no rol de queixas da população que surgiram a partir dos protestos contra os aumentos das passagens de ônibus em várias capitais brasileiras. Para a socióloga e antropóloga Nágila Ibrahim El Kati, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), essa diversidade de temas resume-se em um desejo latente dos brasileiros: aprofundamento da democracia.
“As pautas dos movimentos sociais não caem do céu. Esse grito por uma maior prestação de contas dos gestores públicos são fruto do nosso atraso em promover mudanças profundas e estruturais na sociedade”, afirma a socióloga.
Nildo Viana, sociólogo da Universidade Federal de Goiás (UFG), aborda a crise de representação que assola todo o mundo. De acordo com ele, os representantes eleitos não fazem o que o eleitor espera, o que gera primeiro uma recusa e depois uma politização das pessoas.
“A reforma política sozinha não garante mecanismos efetivos da população participar dos processos de decisão. O exercício da democracia não se resume ao voto e a prática da política não é exclusividade de quem ocupa cargo público. Os políticos terão que se acostumar com a sociedade intervindo diretamente nos processos decisórios”, sustenta Nildo.
Nágila El Kati ressalta que os últimos governos brasileiros frustraram o povo na promessa de fazer reformas que resguardassem os interesses do povo e ampliassem a participação direta das pessoas nas decisões sobre os rumos do país. E a decepção foi ainda maior pelo fato dos últimos presidentes brasileiros terem sido de partidos que em tese são de centro esquerda: PSDB e PT. “Ambos agiram como as elites mais atrasadas, sobretudo no que se refere à resistência em modificar as regras eleitorais que favorecem o poder econômico. O povo percebe isso”, afirma.
Os sociólogos lembram que apesar do Brasil ser a sexta economia do mundo, ocupa a 85° posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU). “Os ganhos econômicos até diminuíram a desigualdade, mas não interferiram na estrutura que mantém essa desigualdade. É nesse ponto que o movimento passe livre quer tocar”, analisa o sociólogo Dijaci de Olveira, da UFG.
Para Nágila El Kati, a luta por transporte público está longe de ser uma “demanda menor”. “Esse tema nos obriga a refletir sobre a política das cidades, do acesso aos espaços, mostrar que problemas vêm se arrastando até chegar num ponto insustentável. Depois do enfrentamento com a polícia, finalmente esses grupos foram ouvidos. E continuarão sendo. Esse é o recado das ruas”, diz.