Um mito contestado
O senhor está preparado para receber muitas críticas por conta deste trabalho? A pergunta ao professor João Alberto da Costa Pinto, da Faculdade de História da UFG, é inevitável, já que ele acaba de lançar um livro em que dá outra visão de um mito do marxismo no Brasil: Caio Prado Jr.. “Sim, já estou acostumado a apanhar”, brinca ele, autor de O Nacionalismo Corporativista de Caio Prado Jr. (Cânone Editorial). “O título já é uma pequena provocação”, admite.
A obra é parte de sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense, em que ele aborda três grandes intelectuais do século 20: além de Caio Prado, também Gilberto Freyre e Nelson Werneck Sodré. “Combinei com a editora lançar uma série de livros. No ano que vem virá a obra sobre Gilberto Freyre e, em 2015, a de Nelson Werneck. Também planejamos livros de outros dois autores menos conhecidos, os historiadores Oliveira Viana e Azevedo Amaral”, anuncia.
Nenhum dos títulos, porém, deve causar tanto debate quanto este primeiro da série. “A minha tese contrasta com o que já existe quando se fala de Caio Prado Jr.”, avisa João Alberto. “Ele é considerado o grande marxista da historiografia brasileira, mas meu estudo mostra que não é nada disso. Lendo os 12 livros que Caio publicou – as outras obras foram coletâneas que saíram quando ele já não escrevia mais –, percebe-se que ele prega, na verdade, o que chamo de nacionalismo corporativista.”
A opinião é forte e rende discussão, mas o professor da UFG não se furta a explicar o que ele considera um grande equívoco de interpretação sobre um dos intelectuais mais influentes no Brasil no século 20. “É um despropósito falar que seu trabalho é marxista. Seu pensamento está ligado a uma matriz positivista da sociologia e da historiografia francesas, com inspiração em Durkheim”, defende.
Para o pesquisador, os enganos sobre o perfil intelectual de Caio Prado Jr. envolvem várias circunstâncias. “Ele era um rico empresário, membro de uma família de enorme fortuna em São Paulo, os Silva Prado. Em 1931, ele se filiou ao antigo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, e foi criada a imagem do empresário comunista. A escolha que ele fez foi sincera, com consequências graves para sua vida, como perseguições. Mas é preciso dizer também que Caio Prado Jr. era um admirador do regime de Getúlio Vargas”, pontua.
Não haveria, então, um paradoxo no fato de um comunista ter tanta simpatia por um regime de forte viés fascista como foi o de Getúlio? “Não necessariamente”, responde João Alberto. “A defesa do Estado Forte era um ponto comum entre nacionalistas e comunistas, sobretudo no período que o Stálin dirigia a União Soviética. O que aconteceu com a obra de Caio Prado Jr. é que ela foi seccionada.”
João Alberto afirma que seus maiores clássicos – os livros Evolução Política do Brasil, de 1933, e Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942 – foram interpretados apenas parcialmente por quem via neles uma extração marxista. “A questão é que Caio Prado Jr. era um autor muito eclético. Ele via pontos positivos em correntes de pensamento e intelectuais que eram totalmente contraditórios. O materialismo que muitos enxergam em suas obras remetia ao positivismo e não à dialética de Marx. As contradições que o marxismo debate, como as de classes, não estão em Caio Prado como se imagina. Sua perspectiva é estatista.”
Racismo
O professor vai ainda mais fundo em sua crítica. “Na verdade, num livro como Formação do Brasil Contemporâneo, publicado quando a Alemanha de Hitler já atacava a União Soviética, há trechos terríveis para um período em que o nazismo pregava teorias eugenistas. No livro há um capítulo chamado Raças. É um capítulo racista.”
Em sua pesquisa, João Alberto sustenta que Caio Prado Jr. se alinhava com o pensamento de um intelectual hoje esquecido, mas que chegou a ser influente. “Oliveira Viana pregava a eugenia, a diferença cientificista entre raças. Há ecos dele nos livros de Caio Prado Jr., que em Formação do Brasil Contemporâneo defenestra a miscigenação brasileira e a forma como se davam as interações étnicas aqui. Isso num momento em que a eugenia ajudava a fundar um regime totalitário como o de Hitler que era combatido pelas democracias do Ocidente”.
Vale lembrar que Caio Prado Jr. estava na Europa, exilado após dois anos de prisão, quando Hitler começa a colocar as garras de fora e a ditadura de Francisco Franco, na Espanha, persegue os opositores que lutaram contra o general na Guerra Civil Espanhola. O intelectual brasileiro ajudou muitos a fugirem de lá.
Depois de retornar ao Brasil, em 1939, Caio Prado Jr. continuou a militar nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro e se elegeu, em 1947, deputado estadual em São Paulo, mas perdeu o mandato em 1948, com a extinção formal da legenda. Em 1944, ele fundou, ao lado de Monteiro Lobato, a Editora Brasiliense.
“Lobato entrou com o prestígio e Caio Prado Jr. com os recursos para financiar o projeto”, explica João Alberto. Isso transformou o intelectual também num empresário preocupado com o incentivo à cultura. Ele editou entre os anos de 1956 e 1964 a Revista Brasiliense, na qual muitos jovens professores começaram a publicar seus trabalhos, entre os quais Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni.
“Esse grupo ligado à Universidade de São Paulo deu a Caio Prado Jr. essa aura de intelectual marxista, mas ele não era socialista. Força-se a mão em muitos trechos para defender essa tese”, alega. “É feito um recorte de sua produção para afirmar isso. A leitura de seus livros desmente tal interpretação.”