Elias Nazareno

12 de março de 2014 (quarta-feira)

Pós-doutor em sociologia, o historiador Elias Nazareno recebeu a reportagem do POPULAR na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG) para uma conversa sobre o contexto sócio-histórico da Copa do Mundo que será realizada no País este ano e também da realidade de Mundiais passados.

O que é possível entender das manifestações que ocorrem contra a Copa e durante os eventos relacionados a ela?

A Copa do Mundo é um pano de fundo para questões estruturais muito mais profundas, problemas estruturais muito mais profundos que o Brasil enfrenta desde a colonização, desde a forma com que nós fomos colonizados até a chegada no que nós chamamos de República, em que a coisa pública é a que menos é respeitada. Temos problemas estruturais na educação, na saúde, no transporte... Questões de longa data. Quando a FIFA, uma instituição à parte dos estados nacionais, uma empresa cujo fim fundamental é lucro, aprovou a possibilidade de realização da Copa do Mundo no Brasil foi uma festa. Todo mundo achou isso fantástico, maravilhoso, como uma oportunidade. O que de fato é oportundiade para se criar uma série de benfeitorias, benefícios qe vão atender em parte a população local. O problema é que nós temos coisas muito mais sérias quando nós vamos pensar em termos de obras públicas, que são estruturais também. A corrupção, por exemplo. Fala-se muito no estado brasileiro, mas não se fala no empresariado brasileiro que não cumpre o que deve cumprir quando entra numa licitação, num edital e, no final das contas, vem sempre o tal do aditivo. Essas manifestações acontecem em função dessa quantidade enorme de demanda reprimida que existe no Brasil por parte da sociedade brasileira. São questões que fazem parte do jogo democrático. Nada mais justo que a sociedade se manifeste quando ela achar que deve se manifestar.

O resultado em campo na Copa pode ter influência de parar essas manifestações ou até na eleição?

A sociedade brasileira nos últimos 30 anos, desde o final do regime militar até hoje, vive um processo de amadurecimento democrático bastante intenso. Nós não podemos esquecer que vivemos num estado democrático de direito. Nós lutamos para isso. Eu não consigo ver a sociedade brasileira nesse nível de infantilidade que não consiga discernir uma Copa do Mundo do seu voto daqui a 6, 7 meses. Claro que tem influência, o clima de alegria, de envolvimento com o futebol, que é uma coisa muito importante no Brasil, mas não vejo que isso esteja sendo utilizado para esse fim. Seria uma jogada meio estúpida se o governo ou qualquer partido estivesse pensando dessa forma.

Algo muito diferente da Copa de 1970, por exemplo? O que podemos lembrar desse momento?

Nós estávamos recém-saídos do AI5 e havia um processo tremendo de repressão política a toda e qualquer manifestação contrária ao governo militar. Não havia mecanismos de expressão públicos em que as pessoas pudessem dizer o que pensavam. É um absurdo completo querer fazer qualquer tipo de analogia entre esse período e agora. A sociedade brasileira estava emudecida. Era um regime de excessão, as pessoas eram julgadas, assassinadas, sem nenhum tipo de garantia legal, constitucional. Não vejo nenhuma semelhança. Há um processo, agora, de abertura, de transição ainda. A democracia no Brasil sempre foi muito mais excessão do que a regra, mas nós vivemos um período, desde o governo do Sarney, de 86 até hoje, um processo de transição e de amadurecimento da democracia no Brasil.

Em 70, havia a consciência de que existia uso da seleção, da Copa, na questão política?

Existia nos extratos mais politizados, quem estava militando nas organizações políticas clandestinas. Nós vivíamos sobre o bipartidarismo, Arena e MDB. Dentro de alguns extratos sociais, havia uma certa consciência, mas assim em termos de sociedade de forma geral, ninguém tinha nem ideia do que estava acontecendo. Nos jornais o que saía sobre essas pessoas que resistiam é que eram terroristas. Até me parece que saiu (recentemente) um artigo no Estadão de um general da reserva falando que o golpe de 64 foi uma revolução democrática. A consciência da população brasileira era mínima. Esse salto de consciência só vai acontecer em termos de inserção da população brasileira, da sociedade brasileira como um todo nas discussões políticas, justamente no final dos anos 70, quando se inicia uma série de greves no Brasil, sobretudo no ABC paulista, em São Bernardo, quando a sociedade brasileira começa a se dar conta de que havia algo muito errado em tudo que estava acontecendo. Então, era necessário criar mecanismos de participação mais efetivos. Em 79 nós temos o movimento pela anistia. Era um clima de luta para que as pessoas pudessem não era nem participar, mas que as pessoas pudessem respirar. As Copas do Mundo de 70, 74 e 78, esta que foi na Argentina, também sobre o regime de exceção, aí sim (a Copa)  era utilizada como algo que representava a pátria de chuteiras ou alguma coisa sim.

É o mesmo cenário no Brasil campeão em 70 e na Argentina de 78?

Há perspectivas em relação aos dois regimes que classificam a ditadura militar argentina como mais sanguinária. Foi um processo mais rápido e mais violento. Em função das características próprias da sociedade argentina, que difere muito da brasileira. Mas, por traz de todo esse processo, se você for analisar a América Latina como um todo nas décadas de 60 e 70 até bem entrar nos anos 80, existe uma orquestração em termos de organização de regimes ditatoriais muito bem articulada. As ditaduras - a chilena em 73, com a morte do Allende e o Pinochet subindo ao poder, a ditadura no Uruguai, na Argentina, no Brasil - tinham pontos muito mais de contato do que nós imaginávamos e, por trás disso, havia também os interesses e a orquestração por parte dos Estados Unidos, fomentando esses movimentos golpistas. Podemos dizer que a Copa do Mundo da Argentina foi utilizada da mesma forma que os militares pensavam aqui no Brasil. Podemos ver pontos próximos, mas existem pontos bem particulares na Argentina.

Fatos assim reduzem a identificação dos brasileiros com os ídolos do futebol e mesmo com a modalidade?

Os ídolos em futebol são construídos e destruídos em velocidade muito grande. Alguns ícones que estão aí e não vão sair nunca mais, como o Pelé, o Maradona, o Cruyff, Di Stéfano, Garrincha, fazem parte de uma época que é aquela época dourada do futebol. Os jogadores passavam a vida inteira no mesmo time. Hoje em dia essa questão está muito mais ligada ao marketing, em como esses mitos são construídos. A velocidade em que eles são projetados e, ao mesmo tempo, começam o processo de decadência é muito rápida. Antes, um jogador chegava no auge da carreira com 30 anos, hoje, o cara com 21 ou 22 anos já está no auge da forma física, da carreira dele. Você tem um cara em que a mídia investe, o marketing investe nele bilhões de dólares em propaganda, aquela coisa, e ele dura o tempo que o mercado achar que ele tem de durar, enquanto gera interesse, depois pode desaparecer. Agora, essa coisa do brasileiro ser muito próximo do futebol também tem explicações sociológicas, obviamente. É um esporte originalmente de elite, só brancos podiam jogar e, de repente, ele passa a ser uma coisa que em qualquer lugar, se você colocar duas pedras de um lado e duas do outro, você faz um campinho de futebol e joga. O brasileiro se especializaou nisso. Passou a ser um esporte que as pessoas podiam fazer porque é muito barato. Mas a medida que há esse processo de inclusão, do ponto de vista econômico, do consumo, o nível de diversificação das expectativas não só em relação a esporte, a turismo, alimentação, ele vai diversificando de fato. Hoje você tem uma ligação muito menos afetiva da população brasileira com o futebol do que você tinha na década de 70 ou 80. Hoje as pessoas têm outras preferências, pelo vôlei, pelo basquete. Tem tantos esportes que chamam atenção. Mas ainda é uma coisa muito forte, porque tem essa ideia de que o Brasil é o pais do futebol, mas do ponto de vista da movimentação, da mobilidade social, essas questões vão se modificando também ao longo da história.

Realizar uma Copa no Brasil ainda significa muito para a população?

Eu imagino que, para quem gosta de futebol, sobretudo, sim. Meu pai era um amante do futebol, meus filhos já não são, não se interessam. Mas é claro que é importante uma Copa do Mundo para o Brasil. O Brasil pode se mostrar mais para o mundo como de fato é, que não é só samba e futebol. Pode aproveitar as oportunidades em relação a melhorias na infra-estrutura. Na época em que o Brasil foi escolhido para sediar a Copa, foi algo visto como oportunidade maravilhosa. Hoje se questiona, porque estamos no meio de uma crise, que começou em 2008. Com a questão da interdependência, o Brasil não tem como não ser atingido. As pessoas questionam muito como essa Copa vai ser realizada. Se nós pensarmos que isso foi uma coisa desejada num determinado momento, nós temos, agora, de arcar com a responsabilidade daquilo que nós desejamos. Eu vejo como uma questão de cidadania assumir a responsabilidade por aquilo que nós, democraticamente, almejamos. Como isso foi feito, o gasto excessivo em obras públicas, isso, claro que tem de ser questionado. Uma coisa é você projetar para o mundo uma imagem e depois dizer assim não, não é nada disso, eu não consigo fazer isso.

Mas existe o temor de a imagem internacional do Brasil piorar muito?

O México realizou duas Copas do Mundo. É um país que, do ponto de vista estrutural, está muito atrás do Brasil. Não acho que a imagem do Brasil vá se deteriorar porque nós não vamos conseguir oferecer um serviço de primeira. Acho que contribui, mas não é nada que os europeus já não saibam que existe aqui. Não vejo como algo determinante. Tão ridículo como dizer que a Copa não vai existir é dizer que vai existir. Foi um compromisso que a sociedade brasileira fez por meio dos mandatários legitimamente eleitos e agora ela vai acontecer, as manifestações vão acontecer. É legítimo também. Esse governo que está aí surgiu dessa forma. Faz parte do jogo democrático, é importante que a sociedade se posicione e cobre do estado, do governo, melhorias, um compromisso mais rigoroso. Tudo isso é muito importante. A sociedade brasileira está madura o suficiente para enfrentar esse tipo de manifestação. Não é uma particularidade do Brasil (as manifestações).

E como fica depois da Copa?

Eu vi uma pesquisa na Folha de São Paulo dizendo que o nível de aprovação da população brasileira em relação às manifestações caiu bastante. As pessoas estão contra, porque esses exemplos de depredação, de violência, acabam afastando as pessoas. Tudo depende muito da economia, mas com certeza nós vamos ter muitas manifestações. Qual vai ser a intensidade dessas manifestações, acho que pode ser que sejam menores do que foi em 2013. Porque há já esse desgaste. A população brasileira entende que o caminho não é por aí. Mas pode ser que de um momento para outro, isso vire um barril de pólvora. Não dá muito para prever.

Source: O Popular