Os inimigos de batina
Vários padres e bispos foram alvos da ditadura militar e alguns dos mais combativos atuaram em Goiás
Elementos de alta periculosidade, detentores de antecedentes desabonadores e sujeitos que tentavam doutrinar o povo com “ideologias alienígenas”. Esses termos foram usados por membros do aparato repressivo e de informações da ditadura militar para descrever padres que se posicionavam contra o regime autoritário que tomou o poder há 50 anos. As referências constam em documentos recentemente disponibilizados para consulta no Arquivo Nacional, em Brasília, pesquisados pelo POPULAR. Os relatórios do Sistema Nacional de Informações (SNI) sobre atuação de padres na resistência à ditadura são datados a partir de 1970, pois a Igreja Católica deu sustentação ao golpe de 1964. A mudança de posição ocorreu após casos de tortura e o assassinato de presos políticos virem à tona, em 1968.
Uma informação confidencial chegou ao Ministério do Exército no dia 11 de dezembro de 1970. O documento trazia uma espécie de dossiê contra o monsenhor José Pereira de Maria. “Popularmente conhecido por padre Pereira, vigário, considerado elemento de alta periculosidade política contra a segurança nacional”, diz o relatório. Padre Pereira foi reitor da então Universidade Católica de Goiás e morreu em março de 2013. Os militares dizem que é notória sua posição “antirrevolucionária”, uma vez que chamam o golpe de revolução. E destacam que o monsenhor trazia mensagens favoráveis à extrema esquerda e pregava a tomada violenta de terras pelos camponeses. O SNI atribui a padre Pereira participação destacada nos meios sindicais antes do golpe e sustenta que ele foi um dos redatores do estatuto da Ação Popular (AP).
A AP foi um movimento político clandestino que representou a radicalização das organizações da juventude católica em relação à ditadura. Na AP militaram nomes que depois seriam políticos de expressão em Goiás, como o ex-deputado Aldo Arantes e o ex-prefeito de Goiânia, Pedro Wilson. Padre Pereira era apontado pela ditadura como ligado a d. Hélder Câmara, uma das principais vozes de protesto contra o regime militar e que chegou a ser cogitado a ganhar o Prêmio Nobel da Paz por sua corajosa campanha em prol da liberdade política. Era tido também como instigador de d. Fernando Gomes dos Santos, então arcebispo da capital, em suas manifestações. “Entre o clero de Goiânia é o único padre sobre o qual d. Fernando exerce total influência”, escreveu o agente do SNI.
Em outro documento do SNI, de outubro de 1976, o núcleo da agência da capital goiana afirma que d. Fernando “tem se caracterizado por permanente atuação contra-revolucionária”, fazendo coro com os bispos d. Pedro Casaldáliga, d. Tomás Balduíno, além do então vigário geral de Goiânia, monsenhor José Pereira de Maria.
D. Tomás Balduíno lembra que o colega Fernando costumava desafiar os agentes infiltrados nas celebrações e outras atividades desenvolvidas pela Igreja. Era comum a presença de pessoas estranhas à vida da comunidade religiosa portando gravadores. “Ele iniciava a fala dizendo: ‘Olha, o que vou falar vai ser primeiro para os que estão gravando’. Era a maneira dele desafiar o regime”, recorda d. Tomás. Embora tenha papel destacado no enfrentamento à ditadura, d. Fernando, a princípio, apoiou o golpe de 1964. É o que aponta o historiador David Maciel, da Universidade Federal de Goiás (UFG). “Ele mudou junto com a alta hierarquia da Igreja, que teve membros da juventude católica perseguidos e padres presos”, diz.
D. Tomás afirma que o colega de batina “foi profundamente marcado” pelo Concílio do Vaticano II, realizado em 1961, que fez a escolha do catolicismo pelos pobres e oprimidos. “Desde então ele tinha um lado definido”, ressalta d. Tomás. D. Fernando estava muito bem acompanhado. Além de d. Hélder, sua linha de atuação de oposição ao regime militar foi compartilhada por outros religiosos brasileiros de grande importância na última década, como o então arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, que denunciou várias vezes a tortura nos porões do regime e era um interlocutor de organizações de direitos humanos no Brasil durante os Anos de Chumbo.
Religioso teria “ideologia alienígena”
Natural de Carpi, na Itália, o padre Francesco Cavazzuti chegou ao Brasil no momento em que a repressão começava a atingir o auge na ditadura civil-militar, em 1967. Uma década depois, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um documento confidencial sobre atividades consideradas subversivas desenvolvidas pelo padre Chicão. Em tom indignado, o relatório reclama que o “padre alienígena” ainda continuava no País, na mesma paróquia, e no “mesmo proselitismo comunista”.
Cinco anos antes, em 1972, o regime militar havia tentado expulsar o padre Francesco Cavazzuti do Brasil. Um inquérito determinado pelo Ministério da Justiça fora concluído em julho daquele ano com a “sugestão para que o nominado fosse expulso do território nacional por prática de atos contrários ao regime e enquadráveis na Lei de Segurança Nacional”.
D. Tomás Balduíno recorda que padre Chicão vinha dando conselhos aos pequenos proprietários da região do Rio Vermelho a não venderem suas terras ao governador do Estado, Leonino Caiado, que pretendia estabelecer uma grande fazenda no local. A atuação da Igreja, em solidariedade ao colega fez a ditadura recuar na expulsão.
Nesta época, um informante do Departamento de Polícia de Ordem Política da Secretaria de Segurança Pública de Goiás esteve em Jussara para bisbilhotar o padre. Assinado pelo agente Paulo Celso Braga, o relatório que se encontra no Arquivo Nacional diz que os fazendeiros da região encontravam-se temerosos com a movimentação dos posseiros, que estavam criando um sindicato. As tensões no campo estão entre os maiores temores dos militares e civis que apoiaram o golpe e Goiás tinha o histórico da luta dos camponeses em Trombas e Formoso, em que pequenos agricultores conseguiram expulsar grileiros de terras e ganhar títulos de propriedades das glebas.
Nesse contexto, a Igreja Católica passou a ser vista com ressalvas pelos detentores do poder quando se apresentou do lado dos camponeses. Conforme o documento, padre Francesco fazia “pregações sindicais”. Após uma missa, ele teria afirmado aos trabalhadores rurais que eles só tinham duas saídas: deixar tudo como está, sendo roubados por grileiros, ou partirem unidos para uma luta armada.
Dois anos após o fim da ditadura, em 1987, o rancor dos proprietários de terras na região ainda estava presente. Na noite de 27 de agosto daquele ano, Francesco Cavazzuti sofreu um atentado. Um pistoleiro atirou contra o religioso em Mossâmedes, a 150 quilômetros de Goiânia, a mando de fazendeiros. Ele ficou cego dos dois olhos, mas sobreviveu. Hoje mora na Itália, mas em agosto de 2012 ele visitou o Brasil e veio a Goiás.
Na ocasião, ele concedeu uma entrevista exclusiva à repórter Malu Longo, do POPULAR. “Deus entrou em cheio nessa história. Ele não permitiu que se realizasse o plano dos homens, que era me matar. Deus salvou minha vida”, declarou. Após ser alvejado, padre Chicão foi socorrido e trazido a Goiânia. Em seguida, transferido para São Paulo, mas retornou à cidade do interior goiano, onde continuou como pároco até 2002. “A perda das vistas foi um problema muito sério, mas depois de um certo tempo passei a reconhecer os lugares onde morei, as ruas e as casas. Em Mossâmedes quase sempre andava sozinho. Ao longo do caminho encontrava crianças que me acompanhavam.”
Padres perseguidos e brutalmente assassinados
Um dos momentos mais assustadores da queda de braço que a ala progressista da Igreja Católica no Brasil travou contra o regime militar instalado no poder em 1964 foi o assassinato do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, em 27 de março de 1969. Na manhã daquele dia, o corpo do religioso, que era muito ligado ao então arcebispo de Olinda e Recife d. Hélder Câmara, foi encontrado na Cidade Universitária, na capital pernambucana. O cadáver tinha marcas claras de espancamento e tortura. O rosto havia sido desfigurado, uma corda estava enrolada no pescoço, ele recebera tiros na cabeça, um corte profundo que aparentava ser uma facada.
O processo criminal não andou e depois de 20 anos o caso foi arquivado, mas o trabalho de padre Henrique junto a comunidades pobres no sentido de incutir-lhes consciência política é visto hoje como a causa da execução. Também era um recado direto a d. Hélder Câmara, homem combativo que tornara-se um símbolo contra a ditadura militar.
O caso do Recife não foi isolado. Pároco em São Félix do Araguaia, na divisa de Mato Grosso e Goiás, o padre João Bosco Penido Burnier foi executado com um tiro na nuca por um policial da cidade de Ribeirão Cascalheira (MT), em outubro de 1976. Oficialmente, ele teria invadido uma delegacia e, após uma discussão com os policiais, a arma de um deles teria disparado acidentalmente, alvejando o religioso. D. Pedro Casaldáliga, outro forte oponente da ditadura, testemunhou o crime e refutou essa versão. Segundo ele, que é bispo emérito de São Félix, os dois foram à delegacia para defender duas mulheres que eram torturadas no local. Após forte discussão, um dos policiais agrediu Burnier com uma coronhada e depois atirou em sua cabeça. A Comissão Especial para os Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça já reconheceu que padre Burnier foi vítima de um crime político.
Há, porém, um outro lado desta moeda. Em 1964, a Igreja, temerosa de um suposto golpe comunista que se desenhava, apoiou a tomada do poder pelos militares. Ela foi um personagem importante, por exemplo, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de caráter conservador. A Comissão Nacional da Verdade montou um núcleo para identificar como aconteceu o colaboracionismo católico – e também evangélico – com a ditadura, sobretudo em seus primeiros anos.
CORREÇÃO
O presidente da Associação dos Anistiados Políticos de Goiás, Marcantônio Dela Côrte, esclarece que o então arcebispo de Goiânia, d. Fernando Gomes dos Santos, abençoou a Passeata da Vitória, convocada pelo então governador Mauro Borges, em 13 de abril de 1964, que saiu da Praça do Bandeirantes até a Praça Cívica, onde houve um comício para comemorar o golpe militar de 1º de abril e não a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Esta foi realizada no final de abril e teve entre seus líderes o ex-reitor da UFG, Jerônimo Geraldo de Queiroz, sem a presença de d. Fernando.