Barriga de Aluguel

Barriga de Aluguel

07 de setembro de 2014 (Diário da Manhã)

Embora o termo “Barriga de Aluguel” nos remeta a um acordo financeiro, por lei, o procedimento não pode envolver qualquer transação comercial. De acordo com o ginecologista e obstetra Waldemar Naves do Amaral, especialista em Fertilização Assistida, os termos útero de substituição ou cessão temporária são os mais corretos para serem pronunciados.

Ele, que também é professor adjunto e chefe do departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Goiás (UFG) realiza, por ano, aproximadamente, 220 procedimentos de fertilização in vitro na sua clínica em Goiânia. Waldemar explica à reportagem do Diário da Manhã que dos 220 processos de fertilização, 20 são de fertilização assistida com útero de substituição, popularmente chamada de “Barriga de Aluguel”.

Para o médico, enquanto o índice de gravidez através do método natural é de cerca de 20%, o de fertilização in vitro convencional é de 40%, o dobro das chances do natural. Melhores ainda são as possibilidades de gravidez na fertilização assistida com útero de substituição que chegam a estar entre 40% e 60%. “É muito alto é tem três vezes mais de chance que o natural, então esse é um resultado de excelência”, constata.

A barriga de aluguel, esclarece o especialista, implica na cessão temporária do útero para que o óvulo da mãe biológica, já fecundado com o esperma do pai possa se desenvolver nos meses seguintes, até o nascimento da criança. Ou seja, o material genético é exclusivamente do casal, o útero é terceirizado e apenas carrega o bebê não tendo qualquer relação genética com a terceira pessoa envolvida.

Impossibilidade

Entre as condições que normalmente levam uma mulher a recorrer à barriga de aluguel, estão um histórico de doenças graves relacionadas ao útero, bem como quem já tenha passado por uma histerectomia – remoção do aparelho reprodutor –, ou, ainda, condições de saúde que comprovadamente colocariam a vida da paciente em risco se ela engravidasse. “Essa mulher preparada para engravidar, mas que não tem seu útero em condições de gestar, ou não tem o útero ou ainda a  cavidade do mesmo não funciona, ela só poderá ter filho se alguém carregar o filho para ela”, diz Waldemar.

De acordo com ele esse é um procedimento autorizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e para isso, a doadora do útero tem de ter algum parentesco consanguíneo até o quarto grau com um dos parceiros. Sendo assim, pode ser a mãe, sogra, irmã, tia ou prima. Até mesmo uma amiga muito próxima ao casal, desde que se obtenha a aprovação do CFM.

Em busca de um sonho

Atualmente o ginecologista, especialista em Fertilização Assistida Waldemar do Amaral tem feito o acompanhamento do caso das irmãs Ana Patrícia Neirão do Amaral Morais, 35 anos – que vem tentando engravidar, há cinco anos, mas devido problemas de saúde não consegue –, e Andrea Neyrão do Amaral, 40 anos, que se prontificou a ser a doadora do útero para que a primeira realize, por meio dela, o desejo de ser mãe. Elas que vieram de Belém, capital do Estado do Pará, encontraram no avanço da Medicina a chance de realizar um sonho.

A fonoaudióloga Ana Patrícia, desde que se casou, tenta ter filhos, mas por ter mioma uterino, mesmo depois de incessantes tratamentos, não conseguiu a desejada fecundação. “O meu problema para engravidar foi a questão dos miomas, fiz cinco cirurgias para retirá-los, mas não deu certo porque existem muitos na minha cavidade uterina”, lamenta.

Após algumas tentativas e muita relutância à proposta feita pela irmã, muito emocionada conta a difícil decisão que teve que tomar, depois de ouvir o diagnóstico médico de que ela não poderia gerar um bebê. “Cheguei em Belém e falei para minha irmã: ‘Andrea não tem como... tem condições de você fazer por mim?”, lembra Ana, visivelmente emocionada.

Andrea recorda que nesse momento se prontificou lembrando à irmã que havia decido bem antes e caso ela tivesse aceitado, à época, sua proposta, hoje, ela já teria um bebê com três anos. “Quase que a vi morrer, há três anos, na minha frente, aquilo me despertou a atenção, quando disse para mim mesma, não, se ela precisar um dia de mim, estarei pronta para ajudá-la”, afirma.

Ela ainda define o sentimento de poder ajudar a irmã. “Tenho uma palavra curta e bonita, “amor”, decidi realizar o sonho dela através da palavra amor”, descreve. Andrea e Ana Patrícia sempre se deram muito bem e se vêem como amigas parceiras e confidentes. Andrea é mãe de uma menina de cinco anos e sabe o significado que tem o ato de ser mãe. É visível a felicidade que as duas deixam transparecer em cada gesto.

O procedimento

A decisão de ser a doadora foi e está sendo muito bem planejado, conforme Andrea. Os exames médicos mostram que ambas se encontram em perfeita saúde, aptas a passarem pelo processo de coleta do material genético e fertilização. Ambas asseguram que os procedimentos realizados até agora tem ocorrido com sucesso. “O doutor Waldemar disse que poderia nos dar nota 20, mas como a nota não existe ele deu nota dez para nós”, conta Ana com brilho no olhar.

Todos os procedimentos, que ainda não haviam sido realizados até o momento da entrevista estavam programados para os próximos dias. Na segunda-feira, 1º, Patrícia passou pelo processo de coleta do óvulo e do sémen do marido, para posteriormente passar pelo processo de fecundação, feito pelo especialista em fertilização assistida. Na quinta-feira estava previsto o processo de fertilização assistida, no útero da irmã.

Se tudo corresse bem a família retornaria a Belém, ainda no sábado, 6. “O meu médico, em Belém, já está a par de toda a situação, mas sempre que for preciso entrarei em contato com o doutor Waldemar, para tirar dúvidas”, declara Ana Patrícia, cheia de expectativas.

A chegada do bebê

Patrícia e Andrea moram próximas, em Belém, o que, de acordo com elas, facilitará o convívio durante a gestação e acompanhamento da gravidez. Mas Patrícia, mãe biológica, ressalva que antes do bebê nascer, Andrea, doadora temporária do útero, irá para a casa dela. No local existe um quarto todo especial e confortável para a irmã passar os últimos dias que antecederão o parto. “Já temos um quarto para ela e a filhinha dela.  Após o neném nascer ela ainda irá ficar um período com a gente”, conta a irmã mais nova.

Ela ainda acredita que a irmã ficará um período, entre seis e sete meses, morando na casa dela devido o tempo de amamentação essencial para o bom desenvolvimento da criança. Patrícia ainda pontua que tudo, desde os pormenores, já foi conversando com Andrea, até mesmo o tipo de parto que deverá ser cesárea. Ambas não têm preferência pelo sexo do bebê. “O que vier será um presente de Deus, torcemos muito para que venha com muita saúde”, informam quando questionadas. 

Procedimentos legais

De acordo com o ginecologista e obstetra, Waldemar Naves do Amaral o poder normativo do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que para não haver problemas, a pessoa que vai emprestar a barriga deve ser parente da mãe ou pai biológicos, entre segundo e quarto graus.

A medida tem por fim facilitar a situação e evitar um possível desentendimento entre doador e pais biológicos. Isso porque nem sempre essa mulher tem a mãe ou a irmã, aptas a serem doadoras. Então a normativa estabelece que até o quarto grau seja automático o procedimento. “A clínica que vai efetivar o processo tem a liberdade de trabalhar com autorização já prévia para esse fim”, descreve Waldemar.

Ainda assim o especialista em fertilização esclarece que todo procedimento de fertilização assistida é documentado, com o consentimento dos envolvidos, que têm conhecimento dos procedimentos e autorizam a sua realização. “Os três tem que assinar um documento reconhecendo que entenderam todo o processo e que, portanto permitem sua efetivação. Quem é o guardião desses dados é a clínica que o realiza, de acordo com o preceito da normativa do Conselho de Medicina”, pontua.

O obstetra destaca que depois de grávida a mulher doadora do útero é uma gravida convencional. Como qualquer outra gestante, segue o pré-natal normalmente onde ela achar melhor. “De maneira geral a mãe biológica acompanha tudo isso muito de perto. Por isso que a normativa determina que tenha que ser entre parentes, possibilitando o envolvimento sanguíneo e descartando as possibilidades de envolvimento financeiro. A parceria faz com que as duas se tornem muito amigas tornando-se duas mães do mesmo bebê, essa é a finalidade do projeto”, considera.

Waldemar afirma que se por ventura essa mulher não tiver nem mãe, irmã ou sobrinha em perfeitas condições de fazer esse processo ela poderá solicitar junto ao CFM para que uma amiga seja a doadora temporária do útero. Neste caso o Conselho vai julgar se o pedido tem, realmente, uma parceria, ou implicação financeira. “Se houver envolvimento financeiro não será permitido e, portanto, haverá uma negação desse procedimento. Se não houver o Conselho tem a deliberação de permitir o cumprimento”, informa.

Dessa maneira é possível fazer toda essa correção, em todos os aspectos, para que não haja dificuldades e que esse processo possa trazer felicidade para esse casal realizando o sonho destes de ser pai e de ser mãe”, conclui.

Lei

A barriga emprestada que deverá gerar um bebê para outro alguém, é um assunto bastante polêmico por ser uma atitude que envolve tanto aspectos positivos como aspectos negativos, assim como, legais ou ilegais. Os casos devem ser estudados judicialmente, dentro dos padrões da legislação brasileira, com autorização expressa do Conselho de Medicina. “O Conselho Federal de Medicina, sabiamente, regulamenta, na ausência do legislador, ele dita regras para os médicos se submeterem e fazerem esses procedimentos dessa natureza” declara a presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM-GO, juíza de Direito aposentada e advogada atuante, Maria Luíza Póvoa Cruz. A magistrada hoje aposentada foi à primeira juíza, no Estado de Goiás a autorizar, em 2002, um procedimento de reprodução assistida de “barriga de aluguel” para um casal que não encontrou parente consanguíneo apto a serem doadores do útero de substituição. A autorização veio para que uma amiga próxima ao casal realizasse o processo. “A reprodução assistida é muito importante porque ela vem ampliando sobremaneira os limites da fecundidade masculina e feminina. O estabelecimento dessas técnicas veio responder um desejo de reprodução de homens e mulheres”, cita.

O casal, que ajuizou a ação, na 2ª Vara de Família, a qual a juíza era titular, na época, tinha o material genético que estava em um laboratório, mas eles não tinham parentes que pudessem fazer o uso desse material genético. Póvoa lembra que no caso deste casal a mãe biológica, que desejava ter o filho, já havia se submetido a vários procedimentos para se tornar fértil. Em decorrência disso ela teve embolia e não tinha como engravidar. Para agravar ainda mais a situação ela não tinha irmã que se submetesse ao procedimento e a mãe já era idosa. No entanto, uma amiga havia se disponibilizado a doar a barriga, obviamente, o útero para abrigar aquele material genético.

Diante das circunstâncias o casal entrou na Justiça pedindo a implantação no útero da amiga. “A par dessa situação autorizei o procedimento e na época houve um recurso, por parte do Ministério Público, e o Tribunal de Justiça entendeu que mãe é quem quer o filho, mãe e pai são os donos do material genético e não quem está gestando. Daí surgiu essa decisão”, esclarece.

Para a magistrada essa decisão foi muito significativa, apesar de existir o princípio que mãe é quem gesta, em decorrência do avanço da Bioética da Genética, a reprodução assistida possibilita a questão de que mãe nem sempre é quem está gestando, podendo esta apenas encontrar-se gerando um material genético que não é o dela.

Com o avanço da Medicina nós podemos dizer que a reprodução humana, que antes só ocorria quando havia uma relação sexual é, hoje, intervenção do homem no processo de procriação natural.” Ela acrescenta que esse processo tem por objetivo possibilitar às pessoas com problemas de infertilidade e esterilidade, a chance de realização de sonhos, através do alcance da maternidade ou paternidade.

Entraves

O Conselho Federal de Medicina autoriza até o quarto grau de parentesco à barriga de aluguel, não sendo necessária a autorização judicial. Esta é necessária somente em casos em que não há vínculo sanguíneo. Por outro lado, existe o perigo de esse ato torna-se comercialização, como está acontecendo com frequência na Índia, país onde a miséria é tanta que o útero é utilizado como uma matriz, fonte geradora de recursos financeiros. “Nós temos que ter um controle, a partir de um ponto de vista moral, de um ponto de vista cultural e de um ponto de vista ético”, ressalta Póvoa.

No Brasil, de forma ilícita, chega-se a cobrar entre R$ 40 e R$ 60 mil. Visto sobre esse prisma, o assunto toma outra dimensão, pois se assemelha mais a uma transação de compra e venda de mercadoria. “Aqui no Brasil a Constituição Federal proíbe vender parte do corpo humano. Seja para transplante, seja para conduzir um material genético de terceiro, por isso até hoje não se avança nesse sentido”, constata Maria Luiza.

A advogada acrescenta que tais incongruências incorrem inclusive em prisões e, administrativamente, sanções pelo Conselho Federal de Medicina. “As penalidade estão inseridas no Código Penal, são condutas criminosas, não só às pessoas que se submetem ao procedimento, como também os profissionais. E estes estarão sujeitos não só as penalidades do Código Penal mais também ao Conselho Federal de Medicina”, esclarece.

Devido à possibilidade de procedimentos contrários aos princípios éticos e morais da reprodução assistida, pessoas que não têm parentes para serem doadoras do útero não precisam perder as esperanças. De acordo com a advogada Maria Luiza Póvoa, existem, hoje, várias decisões judiciais nesse sentido no País inteiro tendo como parâmetro a Constituição Federal e o Conselho Federal de Medicina. Porém, “isso deve ser feito de forma gratuita, igual transplante de órgãos. Você não pode vender parte do seu corpo”, adverte.

Envolvimento emocional na doação de útero

Por se tratar de um procedimento tão delicado a reprodução assistida precisa ser tratada com muita cautela mesmo que a doadora seja da família, ponderam especialistas. Além de ser submetida a uma avaliação psicológica e uma série de exames preventivos, a doadora do útero deve ser maior de idade, ter dado à luz pelo menos um filho e demonstrar estar em condições emocionais para passar pelos nove meses de gestação ciente de que assim que o bebê nascer será entregue para o casal criar.

Para psicóloga, psicoterapeuta e professora do Ipog, Purificación M. A. Miceli, ao se fazer uma análise psicológica sobre o assunto, é possível encontrar alguns dos efeitos causados em ambas as partes envolvidas nesse ato. Para o acompanhamento profissional e psicológico torna-se importante para diminuir o estresse emocional e a ansiedade gerada, pela expectativa do que pode vir a acontecer após o nascimento do bebê.

Ela alerta para o fato de que podem ocorrer anomalias como com qualquer gestação normal. “Temos o exemplo de um caso recente de barriga de aluguel de gêmeos, onde um deles nasceu com Síndrome de Down e foi rejeitado pelos pais biológicos”, pontua. Também acrescenta que “a doadora do útero necessita de apoio para preparar a quebra de vínculo criado durante a gestação e para o momento de passagem do bebê para seus verdadeiros pais. Se houver algum grau de parentesco, por vezes se torna mais complicado devido à convivência familiar”, avalia a psicóloga.

Purificación observa que do outro lado se apresenta o casal, que provavelmente, tenha tentado vários recursos para alcançar o seu sonho de gerar um filho. “Tudo indica que esse sonho seja uma enorme conquista para completar a relação marital e, ao mesmo tempo, realizar o grande desejo maternal de embalar um filho no colo. Contudo, por não tê-lo gerado, a mãe biológica pode sentir que não foi completo seu ciclo enquanto mãe, fator este pelo qual precisa de ajuda psicoterapêutica”, constata.

Por vezes, analisa a especialista, a doadora do útero fica com sentimento de vazio existencial, gerado por uma sensação de ter sido “mãe sem filho”. Isso pode ser consequência do vínculo criado durante a gestação, mesmo sabendo que apenas se tornou um suporte para o processo, porém este fator, de acordo com ela, pode variar de pessoa para pessoa.

Algumas mulheres têm o instinto materno muito aguçado e torna-se difícil para elas a separação do bebê. Às vezes até ocorre negação da entrega. Em alguns casos é possível gerar culpa e remorso por ter se prestado ao papel, mormente se tiver filhos próprios. Isto não implica em trauma e sim em sofrimento. Nesta situação, torna-se importantíssimo passar por psicoterapia de conscientização com a proposta de rompimento de vínculos”, descreve.

Para Purificación a ciência voltada para a Medicina está sempre disposta a melhorar a condição de vida do ser humano, melhorando não só sua saúde, mas propiciando possibilidades de uma sobrevivência mais completa e feliz. “Cabe ao indivíduo conhecer as regras exigidas para qualquer realização, dentro dos seus conformes e não ferir os princípios morais da sociedade” declara.

Ela acrescenta que “de toda forma, a barriga de aluguel pode tornar-se um ato de nobreza dessa pessoa que se presta nesta ajuda, que se dispõe a utilizar o espaço de seu próprio corpo e o tempo de sua vida (nove meses) para realizar tal incumbência. O prognóstico dessa atitude dependerá do contrato feito de ambas as partes”.

Ajuda

Com as irmãs que a reportagem do DM acompanhou não foi diferente. Ana Patrícia revela que teve que começar a fazer psicoterapia por conta de todas as mudanças dessa nova realidade, principalmente, por conta de uma ansiedade grande que sentia por não poder engravidar. “Fiz por que tinha muita ansiedade em querer engravidar, mais também porque ficava pensando como ficaria meu casamento, sendo que meu marido sempre quis ter um filho. Cheguei até pensar em separação, coisa que não vai acontecer, mas permeavam meus pensamentos”, descreve.

Já a irmã Andrea, acredita que está no controle da situação e se diz tranquila. “Na verdade estou mais calma, que vou ficar os nove meses gerando, do que minha irmã que está muito ansiosa. Mas, sempre procuro transmitir calma para ela”. Para ela “tem uma única coisa que pode definir tudo isso, que é nossa história de vida, somos muito unidas, a palavra irmão pelo menos na minha experiência é alguém por quem você tem muito amor, que você compartilha tudo, a sua felicidade, a tua alegria, a tristeza do outro, esse momento é um momento realmente de laço de amor”.

 

 

Fonte: Diário da Manhã

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