Preconceito é principal entrave para conclusão de ensino

Data: 01 de março de 2015

Fonte: O Popular

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Travestis em universidades não são uma novidade, apesar das adversidades. “O grande problema é se manterem na sala de aula. O preconceito vai além da identidade de gênero, bate de frente com a transformação corpórea que causa estranheza, levando a pessoa a desistir dos estudos”, afirma a psicóloga e filósofa Beth Fernandes, presidente da Associação dos Travestis, Transexuais e Transgêneros (Astral). Beth conhece bem essa realidade. Quando se formou há 20 anos deixou para trás histórias de suicídio de colegas que não suportaram a pressão.

Recusadas no mercado formal de trabalho, essas pessoas sobrevivem através da prostituição aumentando os riscos, inclusive para a saúde pública. Na capital paulista, sob uma chuva de críticas, o prefeito Fernando Haddad implantou o programa Transcidadania, que concede bolsa de R$ 820,40 a travestis e transexuais que desejam estudar para garantir uma qualificação e entrar no mercado formal de trabalho.

No Projeto Vozes, coordenado por Beth Fernandes, um trabalho de redução de danos e prevenção de riscos, 10% das travestis e transexuais atendidas já estão cursando o ensino superior. “Pode parecer pouco, mas é uma pescaria. O acesso é difícil, mas mantê-las lá é mais complicado. Tivemos casos de alunas que tiveram problemas por causa do uso de banheiro feminino. Aí vamos até a universidade para dar palestra”. Beth explica que a Astral tem grande acolhida na Universidade Paulista (Unip), onde algumas das atendidas pelo Projeto Vozes cursam Odontologia e Direito.

Coordenador de Inclusão e Permanência da UFG, Jean Baptista garante que, a exemplo de outras travestis já matriculadas na instituição, Larissa será bem recebida. “A UFG implementou políticas para reduzir a vulnerabilidade social”. No ano passado, o conselho universitário aprovou por unanimidade o uso do nome social na instituição por travestis. Apenas a matrícula é feita no nome de registro de nascimento, mas nos cadernos de chamada, na carteira de estudante, na biblioteca prevalece o nome social.

Desde a regulamentação, a Pró-Reitoria de Graduação recebeu 13 solicitações. Jean Baptista ressalta que há um intenso trabalho de conscientização da comunidade acadêmica.

Quase reitora

Em 2012, a cearense Luma de Andrade ficou conhecida por ter sido a primeira travesti do Brasil a fazer doutorado. Sua tese em educação na Universidade Federal do Ceará (UFC) foi sobre travestis nas escolas. Este ano, num movimento batizado de “Luma Lá”, ela foi aclamada pelos alunos da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), para se tornar reitora da instituição, mas foi preterida pelo ministro da Educação, Cid Gomes.

 

Das ruas para a sala de aula

No dia 30 de abril de 2013, aos 23 anos, Rodrigo Eugelmann foi personagem de reportagem do POPULAR. Na época, o jovem, ex-morador de rua, comemorava a vitória por ter sido aprovado em dois vestibulares, um para o curso de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), e outro para História no Instituto Federal de Goiás (IFG). O desejo de tornar-se um profissional com diploma de nível superior, entretanto, teve de ser adiado porque Rodrigo não havia concluído o ensino médio. Agora, pouco mais de um ano depois, ela está mais próxima do sonho. Depois de ter feito o Exame Nacional do Ensino Médio, ele se matriculou pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) no curso de Letras - Linguística da UFG. Dentro da instituição, entretanto, ele espera ser reconhecido e aceito em outra condição de gênero, como a travesti Larissa.

“Só deixei de ser Larissa por quatro anos”, conta. A mulher que sempre existiu dentro dela, desde que nasceu na favela México 70, em São Vicente, litoral paulista, traçou uma vida de sofrimento e exclusão. Nos primeiros anos de vida escolar sofreu tantas agressões de colegas pelo seu jeito afeminado que decidiu abandonar os estudos. As roupas de meninas tornaram-se habituais aos 15 anos e foram aceitas naturalmente pela família, mas o ambiente em que vivia não colaborou. Tornou-se usuária de drogas, traficante e partiu para a prostituição. Dos 15 aos 18 anos, de forma clandestina, se entupiu de hormônios e fez aplicações de sete litros de silicone para moldar o corpo de mulher.

Foi assim, oscilando entre Rodrigo e Larissa, que chegou a Goiânia depois de muitas caronas de caminhoneiros. Sem lugar para ficar, fez da rua o seu lar e tornou-se uma usuária contumaz de crack. Cansada de dormir com outros moradores de rua ao lado da Marginal Botafogo buscou ajuda na Câmara de Vereadores e foi orientada a procurar o Projeto Metamorfose, de apoio a dependentes químicos. “Fiquei lá, sob os cuidados da pastora Sônia, de novembro de 2007 a junho de 2008”. Nesse período, voltou a ser Rodrigo, estudou Teologia e chegou a dar aula de Língua Portuguesa numa pequena escola.

Depois de um breve retorno a São Paulo, Larissa decidiu voltar a Goiânia para estudar e trabalhar. “O que eu tiver de conquistar, vou conquistar aqui”, disse ao POPULAR em 2013. E fez do desejo um propósito.

Ao se submeter aos exames do projeto Educação para Jovens e Adultos (EJA), da Secretaria Estadual da Educação, por um ponto, foi reprovado em Física. Por isso não pode se matricular naquele ano nos cursos universitários públicos federais.

Há oito anos Larissa não usa drogas. “Sai do Metamorfose recuperada. Nunca tive uma recaída”. E também nunca desistiu do sonho. Foi insistente com a empresária Lúcia Vasconcelos que por dois anos concedeu a ela bolsas integrais em seu curso de Língua Portuguesa. No ano passado, ingressou na Universidade Alfredo Nasser (Unifan) e fez o Enem conquistando nota suficiente para entrar na UFG.

“Estou na UFG”, ela não disfarça o orgulho ao falar da nova condição de acadêmica de uma universidade federal. Para ela, o mais importante é mostrar às suas pares que travestis podem e devem estudar. Larissa ressalta que enfrentou preconceitos e uma situação de grande vulnerabilidade social desde o nascimento, mas nunca desistiu do seu sonho de tornar-se uma Linguísta. “Conheço muito a exclusão, mas me sinto totalmente segura para enfrentar tudo. Não tenho ninguém para me amparar”.

 

 

 

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