Projeto investiga características do português falado pelos goianos
Verbos e expressões comuns entre os falantes e seus usos foram estudados por pesquisadores da UFG
A língua portuguesa no Brasil possui uma diversidade de variações entre os falantes de cada região do país. Regras da gramática normativa são estabelecidas para nortear formalmente os usos da língua, mas é na fala, na situação de interação, que as pessoas se sentem mais à vontade para se expressar e se apropriar das possibilidades que sua língua oferece, momento em que é possível perceber aspectos mais específicos da gramática da língua correlacionados a diferentes contextos socioculturais. Se em alguns estados do Nordeste o “oxente” é comum e, no Rio Grande do Sul, o “tchê” está na boca do povo, entre os goianos além do “r” retroflexo e do uso do “uai”, marca bem perceptível entre os falantes da região, uma série de características permeiam o discurso da população. É o que mostram as pesquisas desenvolvidas por integrantes do Grupo de Estudos Funcionalistas (GEF) da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), intitulado Português Contemporâneo Falado em Goiás.
O projeto visa investigar fenômenos de constituição do português do Brasil a partir de variedades linguísticas visíveis na fala goiana, com a compreensão da língua e da gramática como parte da identidade de um povo. Um dos aspectos marcantes é o apagamento de pronomes reflexivos junto a verbos, em contextos não aceitos pela tradição normativa. “A reflexividade, que é uma característica gramatical forte, se realiza na fala goiana de uma maneira toda especial. Fura, por exemplo, todas as regras normativas previstas para a elaboração de reflexividade. O goiano fala “eu ajoelhei”, “eu aposentei”, ao invés de “eu me ajoelhei” e “eu me aposentei”, explica a coordenadora do projeto e professora da UFG, Vânia Cristina Casseb Galvão.
De acordo com a professora, 80% dos goianos não realizam a marca de reflexividade na fala. “Na verdade, devido a representações cognitivas e sociais construídas e compartilhadas nas situações de interação ao longo do desenvolvimento da competência linguística, o falante goiano sente que não há necessidade comunicativa de mostrar que um mesmo referente que age no mundo é aquele de quem se está falando. Então só há reflexividade em expressões cristalizadas e de grande força elocucional, como em ‘exploda-se’ e ‘dane-se’”, comenta.
Os verbos de percepção que fazem referência a funções do corpo, como ver, olhar, ouvir, cheirar e degustar, também integram comumente o discurso dos falantes goianos. No entanto, alguns deles passaram por um processo de gramaticalização, ao deixar o sentido concreto para adquirir sentido abstrato, além de assumir funções gramaticais. É o caso da construção “vai ver que”, que assume função gramatical para indicação de dúvida na frase:“Vai ver que torceu o dedo”. Esse uso existe em outros dialetos do português brasileiro, mas sua alta frequência na fala goiana indicia uma marca identitária.
O professor da Faculdade de Letras da UFG, Leosmar Aparecido Silva, estudou as preferências verbais pelas quais os goianos expressam os sentidos humanos básicos e como estes verbos têm seu sentido transformado. Um exemplo pode ser visto numa expressão bastante utilizada em cidades do interior: “ó o leite”. Além da construção fonética do verbo olhar, que se transforma em “ó”, ele afirma que o mesmo assume outra função que não só a de percepção, mas de chamamento, como forma de atrair a atenção do interlocutor na hora de se vender um produto. “O verbo descolou desse sentido mais concreto de olhar para uma realidade física e passou a assumir outro significado que é ‘preste atenção que o carro do leite está passando para você comprar o produto’”, argumenta. É o mesmo caso do falante que responde “Vô vê se dô conta”: o ver assume o sentido de analisar.
Outras construções
De acordo com Leosmar Aparecido Silva, o mesmo processo de gramaticalização também é perceptível na fala dos goianos no uso do verbo fazer e de construções como “é que” e “só que”. Se o goiano quer justificar algo a alguém, ele diz, por exemplo:“É que ninguém pode sair agora”. Já se ele quer criar uma contra-expectativa no que está contando, o “só que” é uma construção a que recorre com frequência: “As meninas foi trabalha, lá, sabe? Só que assim... eu num podia”.
No caso do verbo fazer, o professor afirma que pode adquirir várias funções, também encontradas em outros dialetos do português brasileiro, mas de alta frequência na fala goiana. Uma delas é a de verbo suporte, em que seu sentido é produzido e carrega uma certa pragmaticidade quando é combinado a uma expressão nominal, como na sentença “Fui fazer uma entrevista”, ao invés de “entrevistei”. O verbo fazer pode ainda indicar tempo, a retomada de algo que já foi dito no discurso ou causa, na tentativa de justificar, como mostra o exemplo; “Ele me fez cair do telhado”.
Produção Científica
O projeto se desenvolve ao longo de dez anos e já resultou em duas bolsas de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), seis projetos de Iniciação Científica, cinco dissertações de mestrado, quatro teses de doutorado e inúmeras publicações e apresentações de trabalhos em eventos científicos no Brasil e no exterior. Os resultados também oferecem subsídios para trabalho sobre a difusão do português brasileiro no sul da Itália, fruto de acordo de cooperação internacional assinado entre a Faculdade de Letras e a Universidade Del Salento, na Itália.
Source: Ascom UFG