Com medo da repercussão, Goiânia finge que sete favelas não existem

Data da notícia: 14/04/2017

Veículo/Fonte: Jornal Opção

Link direto da notícia: http://www.jornalopcao.com.br/reportagens/com-medo-da-repercussao-goiania-finge-que-sete-favelas-nao-existem-92009/

Capital convive com 3.495 pessoas que moram em aglomerados subnormais, mas prefere não tocar no assunto e, muito menos, tratar o tema com a devida atenção

Aglomerados subnormais, como as favelas do Rio, não são muito diferentes das áreas irregulares de Goiânia, em que diferentes realidades são vizinhas

Augusto Diniz

“Procurei, seja co­mo prefeito ou governador, retribuir o que recebi desta cidade. Basta lembrar que Goiânia não convive com favelas. Ainda jovem, aos 31 anos, eleito prefeito pela primeira vez, priorizei a casa própria como um bem fundamental. A capital é a única cidade de seu porte que não convive com poeira e lama.”

O trecho acima foi retirado da carta escrita pelo prefeito Iris Rezende (PMDB) e divulgada à imprensa no dia 6 de julho de 2016. No texto, o chefe do Executivo da capital anunciava que, “conhecido o resultado da última eleição para governador, em 2014”, tomou a decisão de “encerrar ali” sua carreira política “com a consciência do dever cumprido”. “Em mais de 50 anos como homem público, posso dizer, com orgulho, que Goiânia jamais se envergonhou de mim”, afirma o peemedebista no documento.

A palavra favela assusta. Quando alguém usa o termo, a primeira imagem que vem à cabeça é a de um conjunto de casas aglomeradas em encostas de morros em alguma cidade do Rio de Janeiro ou na própria capital fluminense. Tadeu Alencar Arrais, professor do Instituto de Estudos Socioam­bientais (Iesa) da Universi­dade Federal de Goiás (UFG) e doutor pela Univer­sidade Federal Flu­minense (UFF), lembra que as pessoas costumam tratar, de forma muito errada, a classificação de favela como um lugar cheio de pobres, recheado de mão-de-obra barata e que tem acesso a poucos recursos.

“A favela da Rocinha, no Rio, por exemplo, tem emprego e as pessoas são felizes.” Mas como assim um morador de favela pode ter uma vida minimamente boa? Favela, na definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é um dos diferentes tipos de aglomerados subnormais. O que define uma favela em si é o aclive ou declive acentuado do relevo em que estão construídas as casas dos moradores.

Assim, diferente do Rio de Janeiro, o que poderia ser chamado de favela em Goiânia não está em encostas de morros, mas na margem de córregos, rodovias, trechos destinados à construção de avenidas, estradas de ferro desativadas ou áreas ocupadas no meio dos bairros. As sete aglomerações subnormais existentes na capital goiana estão inseridas nas realidades dos bairros e todas elas têm acesso por ruas, contam com coleta de lixo, iluminação pública e outros serviços públicos, mesmo que nem todos os moradores tenham um mínimo de condição digna na estrutura de suas casas.

Dizer que Goiânia não tem favelas é uma mentira? De acordo com a definição do IBGE, a capital goiana tem, sim, conjuntos habitacionais irregulares constituídos com o mesmo formato do Morro do Vidigal, da Favela da Rocinha ou do Com­plexo do Alemão. Para entender melhor, é preciso saber o que são aglomerados subnormais, dos quais fazem parte as favelas.

Segundo o IBGE, aglomerado subnormal é um conjunto formado por 51 ou mais casas nas quais os moradores não têm posse da terra, ou seja, título de propriedade. Além disso, essa área precisa ter vias de circulação irregulares, sejam becos, vielas ou ruas, lotes de tamanhos diferentes, considerados irregulares, ou a carência de serviços públicos essenciais, como coleta de lixo, iluminação pública, rede de água, esgoto e energia elétrica.

Goiânia tem sete aglomerados subnormais em regiões inseridas no contexto dos bairros que contam com a infraestrutura essencial citada pelo IBGE. São os casos do Quebra Caixote, nas margens da BR-153, no Setor Leste Univer­sitário, da Vila Lobó (identificada como Jardim Goiás Área I por estar inserida na área do Jardim Goiás), do Jardim Botâ­nico I e do Jardim Botânico II às margens do Córrego Botafogo, no Setor Santo Antônio.

Ainda existem em Goiânia os aglomerados subnormais Emílio Póvoa, no Setor Crimeia Leste, Jardim Guanabara I, no Jardim Guanabara, e Rocinha, que é conhecida como Antônio Fidélis, no Parque Amazônia. As sete áreas, de acordo com os dados do censo de 2010, que precisam de atualização, reúnem 3.495 moradores em 1.066 casas. Toda capital tinha, pelo censo de 2010, 423.297 domicílios. Nas sete favelas de Goiânia estão, portanto, 3,97% das residências da cidade.

Condições

Se compararmos as condições encontradas nas favelas do Rio de Ja­neiro com os aglomerados subnormais de Goiânia, a realidade, apesar de o número de pessoas ser menor, é bem idêntica. Ao lado de uma casa com vários cômodos e uma situação financeira que parece ser melhor, inclusive com quartos para alugar, há no lote ao lado uma divisão de quartos e pequenas casas que se interligam por vielas e becos nos quais passam apenas motos, bicicletas e pessoas a pé.

O ponto pejorativo do termo favela está em um problema básico: a falta de regularização fundiária. “É preciso regularizar a situação de moradia dessas famílias mantendo-as no lugar em que elas moram, muitas delas há décadas”, defende o professor. Para Arrais, a tentativa de estabelecer um rótulo preconceituoso a uma área de moradias irregulares fica clara no nome dado a algumas das aglomerações subnormais de Goiânia, como é o caso de Vila Lobó e Quebra Caixote. “Essas pessoas quiseram ficar lá, elas têm noção da centralidade dessas áreas dentro da distribuição urbana de Goiânia.”

“Cidades ilegais”

Essas favelas ou “cidades ilegais” dentro do município estão longe dos 6.780.071 habitantes em aglomerações subnormais nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém (PA), Salvador (BA) e Fortaleza (CE). Essas pessoas representam 59,3% do total de moradores de áreas irregulares e sem a posse da terra no Brasil. Mais de 77% dos 3.224.529 moradias de locais assim estão em municípios com mais de 2 milhões de habitantes.

Em Goiás, além de Goiânia, Anápolis, Novo Gama e Valparaíso de Goiás são as cidades nas quais as condições de vida que se assemelham às favelas estão presentes. No caso da capital goiana, essas áreas irregulares somam 81,9 hectares, o que representa 819 mil metros quadrados. Não há, como nas favelas do Rio, construções com casas de mais de um pavimento, que crescem na vertical. São cinco locais em lugares planos e dois com aclive ou declive moderado. Na capital fluminense os aclives e declives são acentuados. E é essa a principal diferença. O relevo. Apesar de o número de pessoas ser bem menor, já que as favelas cariocas são praticamente cidades, em Goiânia elas são pedaços de bairros residenciais inseridos de forma centralizada.

“Minha casa foi construída com muito custo”, diz moradora do Jardim Botânico II

Dona Edna e o marido Mário Afonso construíram aos poucos, ao longo de 42 anos, a casa na qual criaram duas filhas e o neto

Quando chegou a Goiânia, 1975, dona Edna Maria Ferreira Meireles, de 65 anos, viu outra realidade do que é hoje o local em que mora há 42 anos, na região retratada pelo IBGE como Jardim Botânico II. “Tinha só um barracão e o resto tudo era mato.” Desde quando ela e o marido, Mário Afonso Meireles, compraram de um morador antigo chamado “seu Ailton” um pedaço de terra e começaram a construir aos poucos a casa, nem asfalto existia na hoje Avenida Jardim Botafogo, entre os setores Vila Izabel e Vila Redenção.

O Jardim Botânico II, de um dos lados do Córrego Cascavel, tinha, pelo censo de 2010, uma população de 515 pessoas, com 252 mulheres e 263 homens. Já o Jardim Botânico I, na margem oposta do mesmo córrego, conta com 249 moradores pelas contas do IBGE, com 130 do sexo feminino e 119 do masculino. Somados, os 764 habitantes das duas aglomerações subnormais da região do Jardim Botânico ocupam 237 casas.

De acordo com Jorge Hércules, presidente do Instituto Comunidade Pró-Logística Urbana (Ilogu), hoje moram nas margens do Córrego Botafogo naquela área do Jardim Botânico I e II 181 famílias. O Ilogu funciona como uma associação dos moradores que luta pela regularização fundiária das pessoas que vivem às margens do córrego entre as avenidas Botafogo e Jardim Botafogo.

Décadas de trabalho

Dona Edna, que teve ajuda das duas filhas e depois do neto para continuar a construção da casa, conseguiu ter hoje uma casa com cozinha, sala, banheiro e quatro quartos. Natural de Anhanguera (GO), ela e o marido, que nasceu em Itapirapuã (GO), fizeram juntos uma casa considerada modesta, mas boa de se viver. “A gente construiu o barracão e foi arrumando aos poucos. Não tinha água, não tinha energia. Era só o buraco mesmo. Não tinha porta, não tinha janela”, lembra.

Orgulhosa da casa feita com muito esforço, dona Edna diz que falta apenas o esgoto. A primeira luta foi para conseguir a energia elétrica, que precisou da ajuda do dono da empresa na qual Mário Afonso trabalhava para chegar. “Só esgoto que não tem, que aqui é fossa, mas é toda calçadinha, tampadinha, né?”, descreve.

Na casa moram dona Edna, o marido, as duas filhas e o neto de 21 anos. No Jardim Botânico II, a média de pessoas por domicílio é de três pessoas. Em toda capital, esse número é de 3,3 moradores por residência. Natural da Ilha do Bananal (TO), o mestiço karajá Jorge Hércules, de 43 anos, vive sozinho na casa que serve de sede do Ilogu, já mais próxima das águas do Córrego Botafogo.

Distribuição dos moradores

A área do Setor Leste Uni­ver­sitário chamada de Quebra Caixote é a com o maior número de moradores. São 851 pessoas em 252 domicílios nas proximidades da BR-153. Depois aparecem as áreas ocupadas que fazem parte do Jardim Guanabara (733), o Jardim Botânico II (515), a Vila Lobó, no Jardim Goiás, com 508 habitantes, e o Emílio Póvoa, no Crimeia Leste (341). No final surgem Antônio Fidélis ou Rocinha, no Parque Amazônia (298), e Jardim Botânico I (249).

Ao chegar em casa, no final da entrevista com dona Edna, Mário Afonso logo comenta olhando para o lugar em que mora: “Tem suor demais meu aqui”. Os dois não escondem o orgulho e a satisfação de, aos poucos, terem edificado o espaço no qual criaram os filhos e agora ajudam na formação do neto, João Victor Meireles, que é bolsista do curso de Engenharia Civil na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).

A família de dona Edna entra em uma realidade de aglomerações subnormais de Goiânia que têm 797 casas em áreas planas e 269 nos pontos de declive e aclive moderado. Os 1.066 domicílios nessas sete localidades têm densidade demográfica de 42,7 moradores por hectare, muito abaixo, por exemplo, de todos os bairros que fazem parte da região do Jardim Botânico, que têm 41.111 moradores e densidade bruta 80,83 moradores por hectare.

Aglomerados subnormais convivem com realidades diferentes na irregularidade de suas construções e na falta de serviços básicos


Serviços públicos

O caso do Jardim Botânico II é basicamente a realidade da maioria das sete áreas com condições iguais ao que a população conhece como favelas na oferta de serviços públicos essenciais. Das 1.066 residências, 875 casas têm abastecimento de água feito pela rede geral de distribuição, 181 têm poço ou nascente na propriedade e outras dez utilizam água de fora da área em que moram.

Domicílios com esgoto da rede de captação são 734 nessas áreas. As fossas sépticas existem em 33 casas. Já a fossa rudimentar está presente em 96 residências. Há 138 moradias que contam apenas com valas, enquanto 39 se utilizam de outro método. A pior situação, segundo o IBGE, estaria em duas casas que não têm nem banheiro. Os moradores do Jardim Botânico I e II não contam com rede de esgoto e quase todas as casas têm fossas.

A coleta de lixo, que passa três vezes por semana na porta da casa de dona Edna, é feita pelo serviço de limpeza da cidade. Outras cinco casas ainda utilizam o recolhimento de resíduos por meio de caçambas.

Já a energia elétrica chega a 1.065 casas pela rede de distribuição. Delas, 757 contam com medidor de eletricidade exclusivo e 255 dividem um medidor comum com outras residências.

Passagens

Das aglomerações subnormais de Goiânia, seis têm passagens do tamanho de ruas e uma tem becos e vielas como acesso. No Jardim Botânico II mesmo, poucos lotes depois de onde fica a casa de dona Edna aparece uma das características que coloca a área como aglomerado subnormal: a falta de padrão entre as construções. No mesmo lote em que está a residência da dona de casa Suely Pereira Mendanha, de 51 anos, existem outros oito domicílios ligados por uma viela por onde passam apenas motos e pedestres.

Em Goiânia, 713 casas nessas áreas têm acesso por vias nas quais é possível passar com um caminhão, 244 do tamanho suficiente para um carro trafegar e outras 109 apenas por motos.
Foi em uma dessas vielas entre casas que, enquanto a reportagem do Jornal Opção visitava o local, duas motos passaram enquanto a goianiense Suely mostrava o caminho até a última residência do lote, a mais afastada da Avenida Jardim Botafogo.

Suely mora com o marido e três filhos em uma casa bem menor do que a de dona Edna na mesma área do Jardim Botânico II. Além dela, outros dois irmãos e a mãe têm residência instalada no mesmo lote. Outras residências são ocupadas por inquilinos antigos da mãe de Suely, dona Sebastiana Pereira, de 77 anos, que costurava uma capa de almofada na entrada da casa.

Presidente do Ilogu, Jorge Hércules diz lutar pela regularização fundiária das 181 famílias que moram perto do Córrego Botafogo é antiga

Seja a dificuldade maior ou menor, o que todos esses moradores querem é resolver a situação judicial que trava uma batalha pela regularização fundiária desses imóveis. Jorge Hércules, que passou a morar em 1992 no Jardim Botânico II, diz que o desejo das 181 famílias dos dois lados do Córrego Botafogo é ter reconhecido o direito de permanecer no local. “Ninguém quer sair daqui, que tem tudo perto, tem CMEI, escola, hospital, supermercado, shopping, para morar sabe-se lá onde em um bairro afastado”, explica Hércules.

O professor Tadeu Arrais, da UFG, concorda com o morador e afirma que é racional fugir do espraiamento urbano, quando os moradores de áreas irregulares são retirados dos locais em que vivem e realocados em novos conjuntos habitacionais afastados das regiões centrais de Goiânia. “Ao qualificar os lugares você qualifica também as pessoas. Criar novos bairros afastados é aumentar o custo da infraestrutura pública.” Tanto é que Hércules brinca que, se antes chamavam a área do Jardim Botânico I e Jardim Botânico II de favela, agora ela é uma “favela chique”, porque tem tudo perto.

De acordo com Arrais, o momento é preocupante, com mais de 13 milhões de desempregados, o que pode aumentar os números de moradias precárias e pessoas em situação de rua na capital. Os dados da última pesquisa realizada pela Prefeitura de Goiânia, divulgados em fevereiro de 2016, identificam 351 pessoas que moram nas ruas da capital, dos quais 12,3% se recusaram a participar da aplicação do questionário para levantamento dos dados e 15,1% não responderam por outros motivos.

“Além do desemprego em alta, nós temos assistência social em declínio, principalmente pelo texto em análise no Congresso da Reforma da Previdência. A situação só não está mais agravada porque, bem ou mal, existe um programa de financiamento habitacional”, descreve.

Preocupação

Na análise do professor, hoje não é mais possível fazer programas habitacionais baseados em experiências da década de 1970, como os mutirões. “A perspectiva não é muito boa. O problema da habitação pode piorar muito em decorrência do aumento do desemprego.”

Em sua carta de encerramento da carreira política, de julho de 2016, o prefeito Iris Rezende (PMDB) chegou à seguinte conclusão: “Em mais de 50 anos como homem público, posso dizer, com orgulho, que Goiânia jamais se envergonhou de mim”. O que a população da capital espera é que realmente não haja motivos para que ninguém tenha vergonha de ter escolhido o peemedebista novamente para prefeito.

E que ele cuide de todos os problemas da cidade, sem se esquecer de seus moradores. Todos eles. Inclusive os 3.495 em áreas similares às favelas, que só querem um reconhecimento de décadas do direito à moradia regularizada.