A TV Digital em debate: a questão do acesso público

Confira entrevista com o professor Almir Almas, da ECA-USP

 

Não é de hoje que vem se discutindo a implantação da TV Digital (TVD) no Brasil. A evolução na tecnologia de radiodifusão em todo o mundo despertou a atenção de empresários, representantes da sociedade civil e do poder público para a necessidade de adaptação da televisão brasileira aos novos padrões e ao diverso leque de possibilidades que a TVD abre diante de nossos olhos, não só no que tange à dimensão técnica, mas também no âmbito político e social. Uma vez que o processo de digitalização chega ao veículo de comunicação mais importante do país (cerca de 90% dos brasileiros possuem pelo menos um aparelho de televisão em casa), entram em pauta questões ligadas ao potencial democratizante da nova tecnologia, e à possibilidade de ampliação do acesso público por meio dela.

A adoção da TVD permitirá, além da melhoria na qualidade da imagem e do som, ações de interatividade à distância e um maior domínio do espectador quanto à forma como deseja consumir a programação que estará à disposição. Além disso, as emissoras terão a opção de se tornarem multicanais, ou seja, com o espaço que irão ocupar, elas poderão optar por transmitir em alta definição ou em dispor de quatro canais que permitirão a transmissão de quatro programações diferentes.

No entanto, aquém de todo o esforço empreendido por algumas entidades da sociedade civil - a exemplo do Coletivo Intervozes, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e de algumas universidades -, a discussão sobre a TV Digital em nosso país ainda está concentrada em seus aspectos legais e tecnológicos, desviando a atenção de pontos importantes, que dizem respeito ao conteúdo do que será transmitido, às potencialidades em relação ao formato, à linguagem da programação e aos atores que irão protagonizar esses novos espaços.

As primeiras experiências da TVD Brasileira serão iniciadas até o final deste ano. O projeto de implantação prevê que a tecnologia chegue primeiramente às maiores capitais do Brasil -São Paulo e Rio de Janeiro – estendendo-se posteriormente às capitais de outros Estados e ao interior. De acordo com o decreto 5.820/2006, que regulamenta a TVD, a princípio a programação das emissoras será transmitida tanto no canal analógico quando no digital, tendo em vista a falta de disponibilidade e o alto custo do equipamento que será necessário para a conversão dos sinais. A expectativa do governo é que em no máximo 10 anos a migração de tecnologias tenha sido completa.

Mas a TV Digital ainda continua a ser um mistério para muita gente. O que muda? E o que ainda é preciso discutir para uma implantação eficiente desse sistema no Brasil? Sobre esse tema, a Agência de Notícias conversou com Almir Almas, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP e videoartista.

Agência de Notícias: Quais são as principais mudanças que a implementação da TV digital provocará no Brasil?

Almir: A mudança mais evidente e mais fácil de ser percebida e vendida acontece no paradigma técnico. Realmente, com a televisão digital a qualidade técnica de transmissão e recepção de radiodifusão muda para melhor. Se a televisão digital ficar apenas nesse aspecto, com as caixas conversoras (inicialmente) e os aparelhos já digitalmente ativos (posteriormente) não permitindo nada além da decodificação do sinal digital, as mudanças serão apenas isso: a continuidade da linha evolutiva do aparato técnico da radiodifusão. Isso já aconteceu várias vezes na história da radiodifusão e a cultura não se modificou. Se o aparato permitir algo além da mera melhoria técnica da imagem e som, se possibilitar mecanismos de interatividade e de inclusão, aí se pode começar a pensar em mudanças, efetivamente.

Agência de Notícias: Em que medida a TV digital pode contribuir para a ampliação do acesso público à comunicação? Existe alguma política pública que possibilite essa ampliação?

Almir: Entendo que a televisão digital poderá contribuir para a ampliação do acesso público à comunicação se os mecanismos de canais de livre acesso, como os da lei de televisão a cabo, por exemplo, puderem ser aplicados a uma legislação de televisão digital. Mas a questão não é só esta. Acredito que não é apenas permitindo, em lei, que existam canais de livre acesso, que a democratização realmente aconteça. Para mim, acesso público significa também acesso aos meios de financiamento da produção. Não adianta ter mais espaços se não se tem como produzir material para ocupá-los. Os mecanismos que abrem espaços para a produção de grupos sociais ou entidades de classe por si só não são suficientes para garantir acesso público.

Os canais de livre acesso da Lei de TV a Cabo brasileira servem como exemplo de como a falta de financiamento pode ser ruim. Embora tal lei crie a premissa do acesso aos meios de comunicação, ela não garante o financiamento, o que o torna de uso restrito (e, pode-se até dizer, em alguns casos, exclusivo), a quem detém capital para a produção.

A tecnologia de televisão digital, por sua vez, pode permitir novos espaços para serem publicamente ocupados através de mecanismos de multiprogramação. Pode ser também um bom caminho, desde que haja mecanismos que garantam financiamento à produção.

Outro caminho são os canais que, segundo o Decreto 5.820, de 29 de junho de 2006, poderão ser explorados pela União, em operação compartilhada. Esses canais (Canal do Poder Executivo; Canal de Educação; Canal de Cultura; Canal de Cidadania) podem se transformar em portas de entrada para uma programação efetivamente produzida por grupos que ainda não têm (ou têm pouco) acesso aos meios de comunicação. Mas, volto a frisar, isso tudo só tem sentido se realmente houver mecanismos concretos de financiamento à produção. É importante frisar, também, que isso tudo só tem sentido se realmente houver, de forma bastante clara, a obrigatoriedade de parceria com a sociedade civil e, o que eu acho o mais importante de tudo, mecanismos concretos de financiamento à produção.


Agência de Notícias: Que tipo de política pública relacionada à TV digital poderia ser criada para descentralizar as produções midiáticas?

Almir: Pode ser que eu esteja batendo na mesma tecla, mas, se não houver políticas públicas de financiamento, não haverá descentralização. A produção audiovisual é cara. E quem detém o capital para bancar uma produção audiovisual é quem consegue efetivamente fazer uso dos recursos midiáticos. Por outro lado, para não dizer que não vejo outras soluções, encaro a web 2.0 . como uma grande ferramenta para romper um pouco com essa barreira. Ou seja, produções baratas e sem grandes pretensões, produções realizadas pelos próprios usuários e com os recursos que os mesmos já possuem, como pequenas câmeras caseiras, computadores e ferramentas digitais baratas, podem fazer a diferença. Se a televisão digital permitir que algo como o que acontece com a web 2.0 chegue ao modelo brasileiro de radiodifusão, pode ser (digo, pode ser) que se descentralize a produção midiática.

Source: Rede Jovem de Cidadania