O bom partido

O bom partido

Para diretora da Faculdade de Educação da UFG, a desvalorização profissional continua sendo o principal entrave para a garantia de um ensino público de qualidade

 

Quando se fala em qualidade da Educação, vários fatores podem ser enumerados como essenciais para garanti-la. Doutora em sua área, a diretora da Faculdade de Educação da UFG, Mírian Fábia Alves, acredita que não é possível eleger apenas um como fundamental.

Para ela, entretanto, a desvalorização do educador enquanto profissional é um fator crucial para o agravamento da atual crise educacional no país. 
Em entrevista ao Escola, a especialista analisa o atual cenário da educação brasileira e também a falta de perspectivas da carreira docente. “Educar é humano. A sala de aula é um fazer entre o docente e os estudantes, e esse fazer depende da figura do educador”, destaca. 
Ela também opinou sobre a formação inicial dos professores. E mais uma vez a valorização da carreira profissional foi apontada como principal indutora da carência de professores em algumas áreas, além do fato de muitos se formarem, mas optarem por outra profissão em busca de melhores perspectivas.


Como a senhora analisa o ensino público brasileiro hoje? 
No momento, nós estamos num momento difícil por causa da greve na rede estadual. Não que as demais redes também não tenham problemas iminentes. Em todas elas nós podemos listar um conjunto de deficiências. Hoje, a discussão está no trabalho docente, que envolve questões ligadas à carreira, salário, valorização e formação continuada. Há dificuldade em assumir a Educação pública na prática, como algo para todos, e que, por isso mesmo, deve garantir qualidade no ensino-aprendizagem. 
Temos também problemas na infraestrutura escolar, com financiamentos. Há cursos que não se materializam por falta de financiamento. Estamos com o Plano Nacional da Educação (PNE) parado no Congresso e o entrave maior é quanto o país está disposto a gastar, ou investir, com a Educação.

Quais são os principais entraves da Educação pública?
Acho que temos um conjunto de fatores que revelam fragilidades da escola pública, problemas estruturais da rede. Se espera uma qualidade da escola pública, mas se desconsidera quem são os seus alunos. Gosto sempre de ressaltar que é muito desigual comparar a rede pública com a privada sem considerar elementos distintos. 
O atendimento à população é feito essencialmente pela escola pública, e não pela particular. E isso é um grande avanço no ensino brasileiro. Ainda assim, temos que investir em questões como tecnologia e segurança. É preciso a participação dos pais. A escola não é obrigada a sozinha dar Educação a essas crianças e jovens. Não é função dela. Precisamos de uma gestão que seja envolvente para que se possa praticar o exercício coletivo do saber.

É possível retirar algum desses elementos?
Se eu retirar questões fundamentais nesse jogo, teremos uma crise instituída. Nós estamos nessa situação devido a um conjunto de elementos que fazem parte daquilo que se chama qualidade da Educação, mas que precisam da atenção governamental e da sociedade como um todo. Se a sociedade não pressionar, não vamos nunca ter uma Educação de qualidade.

Qual a sua opinião sobre as greves pelo país? Elas são o melhor caminho? 
Na Educação, a greve é justa para garantir condições de trabalho aos docentes. A Educação é um direito que passa pelo trabalho essencial e insubstituível do professor. Não tem tecnologia nem máquina que substitua isso.

A senhora acha que são infundadas as críticas em relação à formação do professor no Brasil? Ela é adequada à realidade do mercado de trabalho?
Sou professora de uma universidade pública e posso dizer que os alunos saem bem formados, sim. Reconheço o valor do trabalho feito nessa universidade, em especial na pesquisa e extensão. Temos inúmeras instituições normativas e nem todas formam com a mesma condição. 
Ser uma instituição de qualidade é dar conta de uma sólida formação teórica e epistemológica, além de também dar conta da prática. Penso que temos excelentes experiências dessa inserção dos estudantes no universo das redes públicas. O que nos permite garantir a excelência dessa formação.

Como é feita essa inserção com a prática?
O profissional faz o curso e vai para a rede. Lá, não tem uma receita de bolo pronto. A realidade é extremamente complexa. Isso vai exigir de todos nós a capacidade de, olhando a realidade da escola e da sala de aula, fazer a prática docente ser diferente.

Na prática, como se faz isso? 
Com uma sólida formação. Não tem outro caminho. O nosso professor tem que ter um excelente conhecimento dos conteúdos. Ele tem que saber por onde passa a constituição dos conteúdos e como transformar tudo em prática pedagógica, de sala de aula.

Que argumentos são capazes de responder às críticas de que o aprendizado acadêmico do professor está muito longe do que exige a prática em sala de aula? 
Vamos citar de novo o exemplo da UFG e eu faço a seguinte pergunta: 'De onde vem os nossos estudantes?' É da escola pública. E eles sabem a realidade dessa escola. São estudantes que passam aqui quatro, cinco anos, e não ficam isolados do ambiente educacional. A formação está em constante diálogo com a realidade. 
Eles falam como se nós não estivéssemos em tempos pós-modernos. É como se estivéssemos numa torre de marfim. Aqui dentro existe movimento social, movimento estudantil, e os alunos têm uma dinâmica com esse universo. Eles sabem como é a realidade da escola pública porque muitos, inclusive, trabalham dentro dessas escolas, em estágios, durante a graduação.

Quem pensa assim está equivocado, então?
Existe hoje uma série de equívocos e afirmações que são um desserviço para a Educação pública. São opiniões que não colaboram para a discussão e igualam tudo. Não adianta levantar bandeira da Educação somente em época de eleição, assim como não adianta fazer manifestação só em tempo de greve. 
Temos que fazer um movimento contínuo e permanente de mobilização. A greve na rede estadual de Goiás, por exemplo, nos mostrou que temos que cobrar sempre uma Educação pública de qualidade.

Como os estudantes dos cursos de licenciatura avaliam essa realidade mercadológica?
Muitos estagiários acompanham a rotina da sala de aula e não se motivam. Mas isso é justificável porque qual profissional quer trabalhar em condições ruins e sem perspectiva de futuro? Essa é uma perspectiva frustrante para o profissional. 
E olha que eu não estou falando de missão, de algo divino, estou falando de profissão.

Mas isso coloca abaixo o discurso de que um bom profissional não é estimulado apenas por um bom salário, mas também pela vocação? 
Respondo com outra pergunta: será que um professor, bem remunerado, não vai trabalhar bem mais motivado do que aquele que ganha mal? Na Coréia do Sul, que possui ótimos índices de qualidade na Educação, o professor é considerado um bom partido. E isso reflete uma clara valorização financeira e também social da carreira.

Está diminuindo a procura pelos cursos de licenciatura? Isso justificaria essa queda?
Não há como negar que a docência é uma arte; agora, no mundo em que vivemos, não se vive só disso! Nas faculdades, os alunos passam por uma rigorosa avaliação e acabam concluindo o curso. Se é para passar esse tempo todo estudando, mais à frente deveria existir a recompensa de uma perspectiva de futuro. 
Não dá para discutir a formação ignorando a carreira. O foco é esse! Nós formamos, mas não damos todas as condições efetivas. Isso depende da rede. Para o educador ser minimamente atualizado, ele precisa ter acesso a shows, cinemas, teatro, internet, inclusive para criticar um assunto, e assim acompanhar o nosso aluno. Mas o que acontece é que o professor acaba não tendo sequer tempo para isso.

E o caso dos professores que lecionam em áreas diferentes de sua formação? 
Eu acredito que, dentro das escolas, já é difícil se manter na sua área de atuação. Sou professora de História e se desse aula numa escola de pequeno ou médio porte é provável que eu não completasse a minha carga horária. Me sobra duas alternativas: ou mudo de colégio para completar a carga ou opto por lecionar outras matérias. E esse é o drama. 
Há ainda os profissionais que terminam a licenciatura e falam: 'Não quero ser professor... Nessa realidade, eu não quero! Para ganhar esse salário, melhor fazer outra coisa menos penosa.' E muitos, por isso, saem em busca de outras opções.

Quais são as áreas de formação com maior déficit?
Química, Física e Matemática são as mais impactadas. São profissionais que se formam e vão atuar longe da sala de aula. Para continuar na licenciatura, se interessar por ela, ele tinha que ser motivado pelo menos financeiramente.

A sociedade também precisa cobrar?
Temos que cobrar. Se nós não formos instrumento de pressão, o que vai restar são escolas sucateadas, sem bibliotecas e laboratórios, e com professor mal remunerado. Se nós dizemos que essa sociedade é pautada pela Ciência, Tecnologia e conhecimento, a Educação é basilar nesse processo. Ou nós mudamos a Educação de base nesse país, motivando seus professores com uma carreira atrativa e boa infraestrutura, ou não conseguiremos contornar o atual cenário educacional.

A senhora acredita que é possível melhorar esse cenário em quanto tempo?
Temos experiências extremamente bem sucedidas, que mostram que já está dando certo e que não é algo para o futuro. Escolas com professores motivados, com excelente participação da comunidade, e infraestrutura adequada. Um local bonito, atraente, onde o aluno gosta de ficar. 
Óbvio que isso precisa sair do grupo das exceções e se tornar a regra em todas as realidades escolares. É preciso cuidar e analisar o conjunto todo, senão fica parecendo que não temos boas instituições. Temos escolas com projetos pedagógicos maravilhosos. São experiências que nos mostram qual caminho devemos seguir. Se funciona nessas escolas, nós temos que espalhar essas experiências e virar o jogo da Educação pública brasileira.

Quem é o que fez?

Miriam Fábia Alves é diretora e professora-adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Trabalha como docente no programa de pós-graduação da UFG. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História, Políticas e Gestão, atuando principalmente nas áreas de Políticas Educacionais, Organização e Gestão Escolar e História da Educação em Goiás. Formou-se em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), possui mestrado em Educação pela UFG e doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)