Cultura do extermínio

Sociólogo acredita que os jovens pobres fazem parte de um perfil social que tem sido exterminado no País. Para ele faltam ferramentas de inclusão

 

Autor do livro Juventude Católica: O Novo Discurso da Teologia da Libertação, o professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS/UFG), Flávio Munhoz Sofiati, aborda na obra lançada no fim do ano passado a evolução da Igreja Católica no Brasil.

Para tanto, ele desvenda o surgimento da Teologia da Libertação e estabelece uma linha de tempo em que narra a trajetória da Pastoral da Juventude, desde sua origem até a última Assembleia Nacional, com o objetivo de investigar, por meio do contexto histórico, as transformações ocorridas ao longo de 40 anos na instituição.

Em entrevista ao caderno Escola, o sociólogo faz uma crítica à dificuldade enfrentada pela igreja em dialogar com o mundo contemporâneo e aponta possíveis caminhos para ampliar a interlocução entre a comunidade eclesiástica e a sociedade secularizada. “Se a igreja se sentir responsável pelos jovens que estão dentro e fora da instituição, ela vai rever um pouco suas posições”, ressalta.

Sofiati afirma ainda que os jovens pobres fazem parte de um perfil social que tem sido exterminado no Brasil. “Eles estão à margem da sociedade e a única política pública que tem sido aplicada a eles é a da prisão e do extermínio!”, critica. Para reverter esse quadro ele destaca que é preciso repensar a macroeconomia e a política educacional do País.

O senhor mostra em seu livro que se antes a igreja formava os jovens para atuarem na sociedade, agora eles são formados para atuar dentro da própria instituição. Qual o impacto dessa mudança para a sociedade não eclesiástica?
Você tem uma juventude menos livre para expressar seus pensamentos porque se a atuação é mais interna, os mecanismos de controle da instituição são maiores. Nesse sentido você tem menos possibilidade de avançar em alguns temas que, para a juventude, são importantes, como, por exemplo, o da sexualidade. Em 2011 houve uma discussão em torno da questão do aborto, mesmo por conta da atuação dos evangélicos nas eleições, a pressão que os candidatos estavam tendo etc. E naquele momento, os grupos juvenis que se articulavam em torno do CNJ [Conselho Nacional de Juventude] começaram a debater o tema e houve muitos manifestos em apoio à legalização do aborto e também ao casamento civil de pessoas do mesmo sexo.

A Pastoral da Juventude do Brasil elaborou um documento e a Casa da Juventude também, no qual defendia-se a legalização do aborto e o casamento civil. No entanto, houve um recuo forçado desses setores porque a pressão da igreja foi para que eles retirassem a adesão e o apoio a essas propostas de políticas públicas.


Esses grupos de jovens deixam de fazer diferença na sociedade da forma como poderiam fazer se estivessem mais direcionados para além dos muros eclesiásticos? 
Sim, porque agora você tem uma preocupação maior com o próprio desenvolvimento da instituição. Um dos projetos mais importantes da Pastoral da Juventude é o que eles chamam de Missão Jovem. É um projeto onde você organiza o grupo de jovens para pensar um evento de visita às casas da comunidade para convidar os jovens a voltarem para a igreja. Claro que eu estou resumindo o projeto, mas é basicamente isso. É missão mesmo, onde os jovens vão ao encontro de jovens que não estão na igreja para convidá-los à participar da igreja. Então a ação na sociedade é pensando para dentro. Antigamente o que você tinha era uma formação dentro da igreja, fazendo com que os jovens pensassem na escola, no trabalho, no seu espaço social e até mesmo político.

Movimentos como a Pastoral da Juventude, que agregam os jovens em torno de um objetivo comum, podem suprir a falta de referências dos jovens que não as encontram na família ou na escola?
Sim, porque as Pastorais da Juventude trabalham com uma lógica de formação integral. É o que eles chamam de processo de educação na fé. Então é uma lógica de formação do jovem que o prepara para pensar um projeto de vida, ou seja, de se estabelecer numa lógica do presente onde ele consiga planejar o seu futuro. E no momento em que estamos vivendo uma crise de perspectiva da sociedade, de futuro e de projetos, é importante ter um segmento desse tipo que pense na contramão desse processo.

Recentemente entrevistamos o sociólogo e pesquiasador da juventude, Luís Antônio Groppo, e ele afirmou que a juventude procura espaços desviantes. O senhor concorda com essa afirmação?

Concordo. Na verdade, os jovens, mesmo sendo inseridos em um contexto já pronto, têm um olhar para esse contexto que é diferente dos adultos. Então, inevitavelmente os adultos vão pensar essa lógica de atuação deles como desviante, mas é desviante do ponto de vista dos adultos.

Então isso é importante para o processo de amadurecimento dos jovens? 
Eu acho, seguindo inclusive a perspectiva do Groppo, que, em seu livro, vai pensar a juventude como  elo

de transição, que parecem coisas contraditórias, mas que é um pouco a expressão da juventude e das suas próprias contradições. Os jovens são uma potencialidade e vai depender da sociedade como isso vai ser aproveitado.

Muitas vezes esse novo olhar, que pode ser visto como transgressão, é uma alternativa para superar crises, como essa que nós estamos vivendo de sociedade. Talvez a solução passe pelas novas ideias que as novas gerações possam trazer e, claro, em conjunto com os adultos porque eles também não podem ter esse peso de serem os salvadores da pátria. A solução para a superação da crise hoje passa pelo diálogo entre as gerações.

Como criar um ambiente em que as potencialidades dos jovens possam ser estimuladas e aproveitadas?
O contexto atual é de predomínio da exclusão. É preciso repensar a realidade no sentido de possibilitar a inclusão social dos jovens tanto do ponto de vista profissional, desenvolvendo uma economia que gere novos postos de trabalho e que possibilite que esses jovens sejam inseridos no contexto atual, como do ponto de vista político.

Um passo para tentar recuperar a credibilidade das instituições é convidar os jovens a participarem dos processos decisórios dessas instituições. O jovem só participa quando ele se sente parte, e para se sentir parte nós temos que partilhar poder com eles. As igrejas, os partidos, os movimentos sociais, os sindicatos, até mesmo o estado precisa partilhar mais poder, discutir mais com os jovens as decisões. Acho que esse seria um caminho para a inclusão.

Qual a importância de um evento como a Jornada Mundial da Juventude no Brasil? 
Toda movimentação que envolve os jovens parece algo interessante no sentido de se pensar projetos e processos. Mas vai depender muito de como isso vai ser encaminhado pela própria instituição católica. Quais são os debates principais? Quais são os diálogos que a igreja pretende fazer com os jovens? A jornada é um momento mais festivo, mas aí a igreja tem aproveitado esse momento para criar espaços de formação e reflexão sobre a realidade dos jovens. Eu espero, como grande parte da sociedade, que este novo papa esteja mais aberto aos anseios da juventude e da própria modernidade.

Que ele pense essa questão da afetividade e da sexualidade menos em termos de doutrina social da igreja e mais do ponto de vista da responsabilidade que a igreja, enquanto instituição, tem na sociedade. Se a igreja se sentir responsável pelos jovens que estão dentro e fora dela, ela vai rever um pouco suas posições com relação ao uso da camisinha, entre outros elementos importantíssimos que vem sendo debatidos.

Que características esse novo papa precisa ter para se comunicar com essa sociedade secularizada que não acata como verdades absolutas os dogmas da fé? 
O papa teria que convencer a igreja a fazer uma mudança na sua maneira de se relacionar com a modernidade. E eu não sei se isso é possível porque se abrir para a modernidade significa correr riscos que parece que a instituição não tem muito interesse em correr.

O senhor poderia dar exemplos desses temas que devem ser debatidos com a modernidade? 
A questão de gênero é um deles. Dialogar com a modernidade no sentido de reavaliar a impossibilidade das mulheres de serem sacerdotes. Qual a explicação plausível que a igreja tem hoje para não possibilitar que uma freira celebre uma missa? Então esses são temas tabus dentro da igreja e a modernidade tem exigido cada vez mais respostas coerentes da instituição. Se esse papa conseguisse, em todo o seu papado, resolver o problema de gênero na igreja já seria um grande avanço.

O que significa se abrir mais? 
Repensar os dogmas ela não vai fazer, mas a igreja tem que pensar que ela não pode obrigar  as pessoas que não são católicas, ou até mesmo os católicos que não aceitam algumas posições, a se submeterem a essas posições por conta de leis do estado. A igreja tem direito de ser contra o casamento entre os homossexuais, mas ela não tem o direito de exigir que o estado aprove leis contra o casamento homoafetivo. Ela tem que respeitar essa diversidade e se abrir nesse sentido. E isso serve também para os evangélicos.

A divulgação do Mapa da Violência de 2013 demonstrou que 67,1% das vítimas por arma de fogo no Brasil são jovens. A que isso se deve?  
Esse mapa tem alguns elementos a mais: as vítimas são jovens, negros, homens, de 15 a 25 anos, moradores de bairros periféricos das grandes cidades. Você tem um perfil social específico que tem sido exterminado no Brasil. Se você pegar os índices de mortes desse segmento que eu acabei de descrever, em torno de 67% são mortes violentas.

Esse índice é mais elevado do que a realidade de sociedades em guerra, como, por exemplo, o Iraque na época da Guerra do Golfo. Então, isso é algo muito sério que precisa ser discutido. Nós já temos um estigma com relação a esses jovens. Eles são vistos pela sociedade como bandidos ou com possibilidades enormes de se transformarem nisso. Eles estão à margem da sociedade e a única política pública que tem sido aplicada a eles é a política da prisão e do extermínio!

Como isso poderia ser revertido?
Eu acho que que tem que passar por uma mudança radical na macroeconomia do país. O governo tem que repensar o seu perfil de atuação na economia, tem que tirar o foco da base do capital financeiro e recuperar a base do capital industrial porque é esse capital que gera trabalho e novos postos. Enquanto essa juventude não tiver oportunidade de trabalhos dignos e de ascensão social, ela vai continuar excluída. O que falta hoje no Brasil é isso, repensar a macropolítica, a macroeconomia, e junto com isso uma escola pública que seja para a formação de cidadãos.

Como criar essa escola que pense na formação dos cidadãos? 
Isso passa por uma reconfiguração da própria política educacional. A escola vai voltar a ser um espaço interessante para os jovens quando ela repensar a lógica da cidadania. Ela deve ensinar às crianças, adolescentes e jovens os seus deveres, mas também os seus direitos. Deve criar momentos de sociabilidade e organizar o conteúdo no sentido de mostrar para o jovem que aquilo é importante para ele.  Os próprios conteúdos precisam ser repensados porque hoje eles aprendem cada vez mais a buscar conhecimento.

Isso, na sua opinião, poderia justificar as altas taxas de avasão escolar entre os jovens?
Hoje os jovens não veem interesse na escola porque ela parece uma prisão. Por mais que você tenha esforços de pedagogos e outros profissionais da educação, você tem uma política educacional geral que não favorece a adesão do jovem. Então, essa instituição é para eles, principalmente para os jovens da periferia, algo estranho. E muitas vezes ele é discriminado nesses espaços.

 

Fonte: Tribuna do Planalto