Cronista do Sertão

A Universidade Federal de Goiás concedeu recentemente o título de doutor honoris causa ao escritor e folclorista Waldomiro Bariani Ortencio. A história entre Bariani e a universidade vem de longa data, há duas décadas que a Editora UFG tem uma sólida e profícua relação com a obra do autor, renovada quando da publicação da terceira edição do livro de contos Sertão Sem Fim.

Publicado pela Livraria São José, em 1965, depois de O Que Foi Pelo Sertão (1956) e Sertão, o Rio e a Terra (1959), a primeira edição trouxe duas particularidades, que por merecerem destaque foram mantidas nessa nova: o prefácio do crítico português Adolfo Casais Monteiro, intitulado Um Contista Goiano, e o glossário, elaborado pelo próprio autor.

No prefácio, Adolfo inicia dizendo que sua geração “formou-se numa quase geral repulsa pelo regionalismo”. O articulista delimita a importância da narrativa de Bariani Ortencio, atribuindo a ele uma “fidelidade” ao narrar histórias que o colocam na condição de autor que ultrapassa os limites de um regionalista. Dessa maneira, o crítico vai se distanciando das análises preconcebidas sobre o regionalismo, para apontar os valores literários presentes nas narrativas do então jovem escritor paulista.

A segunda particularidade, o glossário, posto no fim do livro na primeira edição, foi uma iniciativa do autor, cujo resultado contribuiu, mais tarde, para a composição do Dicionário do Brasil Central (1983), também de sua autoria. Retirado da segunda edição (Editora UFG, 2000), o glossário, transformado em notas laterais, trouxe alguns acréscimos, pois, passados 46 anos da publicação original, surgiu a necessidade de se elucidar os vocábulos menos conhecidos pelo leitor atual, já que a estética de Bariani também é registro de um momento fortemente marcado por novas formas de abordar o mundo rural ou semiurbano, e os contos são registros de uma época, cujos traços culturais já foram, em boa parte, modificados.

Além da nítida referência ao modo de vida de um sertanejo, em geral preso a pequenas cidades, a contística de Bariani Ortencio, feita à base de uma oralidade marcante, tem na sua forma traços de um registro do dia a dia da vida sertaneja no interior de Goiás. Mesmo em contos que têm a estrutura tradicional da narrativa de poucas páginas, arrasta-se por eles um teor cronístico, pois neles não predomina um teor dramático.

Seja no relato de emboscadas, nas negociações entre velhos conhecidos, no rejuvenescimento amoroso do velho coronel, nos conflitos que todo garimpo gera, na busca implacável de bandido, as narrativas de Sertão Sem Fim, em geral, declinam do tom dramático que o conto, por vezes, requer, para dar lugar a relatos que vão compondo uma visão do interior do Brasil. Certamente, esse aspecto é resultado da forte influência que os cronistas estrangeiros deixaram na narrativa regionalista, a despeito de terem escrito seus relatos de viagem predominantemente no século 19.

Anedota

Há uma unidade nas narrativas dos contos deste Sertão Sem Fim: são histórias de homens rudes. Essa formulação de síntese aponta para um aspecto também definidor do livro. Esses homens rudes sustentam uma concepção ideológica aplicada aos contos, cujo teor se vincula diretamente à formação do sertanejo em terras do Centro-Oeste brasileiro. Mas como autor que escreve na segunda metade do século 20 em alguns momentos, Bariani Ortencio aplica uma dose de anedota em sua narrativa, pondo em evidência as justificativas da brutalidade. O contista, dessa forma, apresenta um mundo desarticulado, em que os elementos de formação passam a ser vistos por um narrador com lente de desconfiança, uma vez que nessa narrativa se confrontam dois mundos: o Brasil moderno do autor e o Brasil arcaico de uma cultura regionalizada.

O melhor exemplo é o conto Primeira Segunda-feira de Agosto, em que dois homens, contratados para assassinar um vizinho de um proprietário de terras, emplacam uma discussão sobre o dia da semana indicado no título, em pleno lugar da emboscada, e acabam numa luta inglória, culminando na morte de um deles. A circunstância do ato fatídico corre por outra via, que não a da justificativa: mostra que, para se manter vivo entre os homens rudes, era preciso estar preparado para o confronto direto com um opositor. No caso do conto, é da amizade inicial que surge a discórdia. O que era drama em outros tempos agora é anedota na visão de um narrador que não se surpreende com as coincidências que decorrem do fato inusitado.

Sertão Sem Fim é a reunião de 12 contos que não estabelecem uma sequência narrativa no plano do enredo, mas que representam um conjunto de ações inseridas numa mesma ordem de concepção de vida, aquela enraizada em parte do mundo rural brasileiro. Para esta terceira edição, que compõe a Coleção Artexpressão, a Editora UFG reservou a criatividade de Kátia Jacarandá para desdobrar o que se narra em imagens, consubstanciando o texto numa arqueologia de signos e símbolos. Não foi a reprodução em imagem o objetivo da ilustradora, mas a interpretação certeira do que está na essência de cada conto, textos e ilustrações, que se entrelaçam numa harmonia visível.

 

André Barcellos Carlos de Souza é professor da Faculdade de Educação da UFG e assessor especial de Supervisão Editorial e Gráfica da Editora UFG

Fonte: O Popular