Sombra dos quilombos: Livro Pioneiro

Em 1960, ao publicar A Moça Que Ria Muito (1964) e participar da antologia Poesias e contos bacharéis (1966), organizada por José Mendonça Teles, entrei numa vacilação danada em minha vida de aprendiz de escritor. Queria saber se teria condições de continuar escrevendo literatura na sua especificidade literária (romance, conto, novela, crônica, etc.), ou escolheria seu sentido genérico (história, sociologia, antropologia, direito, política, etc.), optando por este último,sendo assim que, já em Mineiros, extremo sudoeste de Goiás, após conhecer a comunidade quilombola do Cedro, planejei e comecei a escrever Sombra dos Quilombos, num período aproximado de oito anos, até publicá-lo em 1974. Não sabia que escrevia um livro do tema afro-brasileiro inédito, na região, a bem dizer, pioneiro, no próprio Centro-Oeste, onde, como constatei, ninguém havia se aventurado a escrever livro a respeito, fato que só tomei conhecimento ao fazer o curso de mestrado em História das Sociedades Agráriasna UFG, nos finais do século XX, então ampliando e aprofundando a pesquisa, tendo como objeto de estudo “Quilombos do Brasil Central”, como subtítulo “violência e resistência escrava” que, em seguida a um bom tempo de meditação, virou livro, já em 2ª edição. 

Dos livros que escrevi, quase todos fora do ambiente acadêmico, Sombra dos Quilombos, mesmo que não seja o mais consistente entre os ensaios que elaborei, é um dos que mais me ofertou alegria e autoestima na minha vida fortemente absorvida pela escrita.  Antes de tudo, porque tirou-me do anonimato “intelectual” na isolada província em que vivia, na pequena cidade de Mineiros, onde foi concebido e datilografado com grande dificuldade; em seguida, por tornar-me conhecido e reconhecido no Estado e até no algarve, onde nunca foi esquecido, não raro possa ter seus desacertos, certamente distinção cá da minha inexperiência intelectual. De todo modo, se não bastassem as boas recomendações de que se acautelou ao nascer, nada menos do que Clóvis Moura, uma das maiores autoridades do tema no Brasil, o felicitou com um interessante artigo publicado em jornal de grande circulação em São Paulo, ora objeto de publicação no livro Escrito nos jornais: tempo de aprendizagem (2007), selo Kelps, do escrevinhador. 

Capa da consagrada artista plástica, Maria Guilhermina, Resumo biográfico do autor, lavra do jornalista Valterli Guedes, ora presidente da Associação Goiana de Imprensa, prefácio do escritor e advogado Licínio Leal Barbosa, hoje em dia pertencente à Academia Goiana de Letras, “orelha”, do inesquecível Anatole Ramos, opiniões dos notáveis Ático Vilas Boas da Mota e Rosarita Fleuri, premiada pela Academia Brasileira de Letras, Sombra dos Quilombos  emerge na literatura historiográfica de Goiás devidamente recomendado. Talvez por ser “assunto” inédito, em livro, exigiu-me muitas leituras, ampla e difícil pesquisa, penosas viagens pelo Goiás afora, como a que só consegui chegar até a velha “Formosa dos Couros”, querendo me adentrar e conhecer o aprazível Vão do Paranã, habitat natural dos Calungas, então chamados “Negros do Leste Goiano”, como os chamei em capítulo do livro referenciado, no qual são também lembrados na página 78, merecendo transcrição, não esquecendo que ao escrevê-lo, ainda não havia o Estado do Tocantins, modificando a geopolítica  da região.

As cidades mais velhas do norte e nordeste, Porto Nacional, que é um tipo de “capital-cultural-regional”, Tocantínia, Pedro Afonso, além de outras, conservam nos seus municípios muitas vila e aglomerados humanos constituídos quase exclusivamente de pretos. E a maioria ainda é formada de uns negros bastante tímidos, mesmo até ariscos. Sabe-se que,  quando vêm ao comércio, é um  “Deus nos acuda”. E andam uns atrás dos outros, em passos iguais, diria, como borôros de Mato Grosso, espantados como se fossem bois de boiada, retratando que vivem – ainda! – em péssima condição sociocultural, higiênica e de alimentação”, acrescentando: Segundo o dr. Juracy Cordeiro, inteligente promotor de Justiça conhecedor daquela área, há por lá os chamados negros calungas, que já formaram a região do próprio nome, dizendo-se mesmo que se comunicam através de um dialeto ininteligível, especialmente quando encontrados num perímetro urbano, o que seria por certo um remanescente da língua africana. Recentemente o professor Altair Sales Barbosa, que leciona antropologia na Universidade Católica de Goiás, em pesquisas arqueológicas no nordeste goiano gravou em fita um tipo de dialeto, que imagina seja remanescente africano, falado por uma negra velha, diria sedentária, de uma furna. Infelizmente, não conseguimos tal gravação. Pois bem, informa em seguida o dr. Juracy que os pretos calungas vivem seminus até os 13 anos; que só andam em fila indiana, podendo-se dizer que são os mesmos que vivem enfurnados e anônimos no chamado “Vão das Almas” em Cavalcante.      

Como já relatei, sem jamais imaginar que fosse se transformar em um  livro pioneiro desses estudos no Centro-Oeste, sobretudo nas terras goianas, onde, para o meu bem-estar, é frequentemente procurado como “fonte informativa” nos Institutos Culturais de Pesquisa e Bibliotecas do Estado, tendo sido assim sumariado: O negro na história goiana, estudando antecedentes, estatística e procedência étnica, influência  sociocultural, mostrando o negro na literatura goiana, em Rosarita Fleury, Bernardo Élis na novela do Nego Piano, dentre outros, notícia da Lei Áurea no Sudoeste e breve notícia sobre os índios negros Avá-Canoeiros, descrição dessa Sombra dos quilombos, arraial do mesquita, arraial negro de Santa Cruz de Goiás e os negros no Leste Goiano, onde também estavam e estão os calungas, Cedro, arraial negro de Mineiros, manifestações antiescravagistas na província goiana, o “13 de maio”, frieza de uma liberdade legal na província distante, cedrinos de Mineiros e a vasta bibliografia, forçando-me a leitura de 121 livros, sem esquecer as entrevistas, pesquisas na Biblioteca da atual PUC, Museu Zoroastro Artiaga, Serviço de Documentação do Estado em Goiânia e a proveitosa visita ao Museu das Bandeiras, em Goiás, ex-capital. 

Por seu conteúdo, se vê que meu intuito foi escrever a história do povo de origem africana em Goiás, notadamente seus remanescentes de quilombos, ali mencionados.

(Martiniano J. Silva,escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM- martinianojsilva@yahoo.com.br)

Fonte: Diário da Manhã