Natal na roça

Naqueles dias que antecediam o Natal, a tradicional festa na casa do seu Godenço, que reunia todo o povo da região, não estava ameaçada apenas pelo aguaceiro que não parava de cair e inundava tudo. Pois não é que o delegado do arraial tinha acabado de anunciar uma nova lei, que exigia pagamento de imposto e a necessidade de tirar licença para realizar um pagodezinho que seja? A ordem partira de Pidrim Lorenço, poderoso fazendeiro local, que resolvera botar um freio na “vadiagem” daqueles lavradores que desperdiçavam tempo com os festejos da folia, em detrimento da labuta no campo.

O compadre Dornelo era do parecer que o mais prudente seria cancelar a comemoração. “Lei é coisa que anda sempre mudando, quem sabe se no ano que entra já está tudo mudado e o senhor já pode revoltar a dar a brincadeira que sempre deu neste grande dia?”, argumentou, tentando convencer o velho Godenço. Mas este não se conformava. Passara dias ajuntando os ovos, secando o polvilho, separando os frangos, apartando as leitoas - além de já ter comprado os foguetes - para celebrar o terço de Natal, uma tradição que vinha da época do defunto seu pai. E, agora, suspender tudo? Não estava direito.

Na véspera do Natal, o tempo melhorou como que por milagre. Já que não podia ter pagode, Godenço resolveu ao menos garantir a ceia e a reza. A gente foi chegando, a animação crescendo e logo o som da sanfona se fez ouvir. O povo caiu na dança, numa alegria geral que só foi interrompida quando o cabo Rogaciano apareceu para acabar com a festa.

As peripécias do velho Godenço para realizar seu pagode de Natal são narradas no conto O Último Natal do Cabo Rogaciano, incluído no livro A Ressurreição do Caçador de Gatos, do escritor Carmo Bernardes, que acaba de ganhar uma nova edição, pela Editora da UFG. Como um Dickens do sertão, Carmo Bernardes tece uma espécie de fábula moral neste seu divertido conto - ou seria melhor dizer “causo”? - natalino.

No prefácio que escreveu para o livro, a professora Vera Maria Tietzmann Silva observa que, em sua obra, Carmo Bernardes procurou retratar o mundo sertanejo com seus princípios rígidos, valores, crenças, costumes e superstições. O sertanejo aprende com a experiência própria e com a sabedoria oriunda das experiências de seus antepassados, por isso apega-se tanto à tradição.

Mas, embora este microcosmo que Carmo se esmera em pintar seja marcado pela forte hierarquização das relações familiares e sociais, isso não significa que os seus simplórios personagens não tenham consciência da opressão a que são submetidos por um sistema baseado no latifúndio. E a insistência do velho Godenço em promover seu terço de Natal é uma manifestação de resistência diante da força do Estado, simbolizada pelo cabo Rogaciano, sempre a serviço dos poderosos.

Fonte: O Popular