A Messias de Goiás

30 de janeiro de 2014.

 

Feitos extraordinários começaram a lhe ser imputados e ela ganhou poder e prestígio. Logo começou a atrair seguidores fanáticos à comunidade de Lagoa, hoje Lagolândia, perto de Pirenópolis, na época chamada pelo povo de Anjos ou Calamita dos Anjos. Não demorou para que o lugar passasse a ser conhecido como a cidade de Santa Dica.

Essa história, com seus improváveis desdobramentos políticos e sociais, está relatada no livro Santa Dica – Encantamento do Mundo ou Coisa do Povo, do professor e pesquisador Lauro de Vasconcellos, que a editora da UFG lança esta noite, às 19 horas, na livraria da instituição instalada na Faculdade de Educação, na Praça Universitária. É a segunda edição de uma obra que foi lançada em 1991, também pela UFG, a partir da dissertação de mestrado que Lauro defendeu em 1984 na prestigiada Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba, interior de São Paulo.

O autor não conseguiu ver a obra publicada, nem mesmo em sua primeira edição. Em 1986, Lauro, que na época já havia trabalhado na então Universidade Católica de Goiás e era professor de Antropologia e Sociologia da UFG, foi assassinado.

Lauro sempre direcionou sua vida acadêmica e sua militância política para compreender e, em muitos casos, defender os trabalhadores mais desassistidos do campo. O trabalho sobre Santa Dica também tem esse viés. O autor analisa como a mulher simples conseguiu, pela vontade popular, se transformar em uma ameaça ao poderio secular dos coronéis do interior goiano e formar uma espécie de milícia paramilitar que chegou a enfrentar tropas oficiais em um encarniçado tiroteio.

Com isso, ele ressalta o caráter messiânico do que ficou conhecido como o Movimento de Santa Dica, composto, sobretudo, por trabalhadores rurais oprimidos por gerações e que viram na mulher que teria poderes especiais uma personalidade em quem poderiam depositar sua fé. Algo que está dentro dos parâmetros dos fenômenos messiânicos, em voga no Brasil naqueles tempos.

Quando o nome de Santa Dica começou a surgir como milagreira, o País tinha viva a lembrança de outro movimento messiânico, o de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro no interior da Bahia, cerca de 30 anos antes. E a forma que as autoridades encontraram para lidar com ela não foi tão diferente assim. A força policial foi empregada para desbaratar aquilo que muitos consideravam um perigo em potencial, já que estimulava outra conduta dos pobres e miseráveis diante daqueles que detinham o poder.

Tais aglomerações esvaziavam a influência dos proprietários rurais, uma vez que os métodos de sustento de tais comunidades, ainda que hierarquizadas, pregavam distribuição mais igualitária de alimentos, de terras para cultivar e menos opressão física e política. Essa alternativa é abordada por Lauro de Vasconcellos em profundidade.

Diferentemente do massacre ocorrido em Canudos, a história de Santa Dica prosseguiu de forma bem diferente. Estima-se que ela aglutinou em torno de si cerca de 15 mil pessoas, um contingente considerável dada a época em que tudo ocorreu. Os “diqueiros”, como eram chamados, não mais atendiam às ordens de patrões e da Igreja. A reação não demorou a vir. Uma ordem de prisão foi expedida contra ela e, no dia de sua captura, uma pequena guerra se instalou diante de sua casa, em Lagolândia.

O confronto foi violento, mas apenas três pessoas morreram, aumentando a fama de Santa Dica, já que ela teria protegido seus seguidores das balas da polícia. Ela, porém, foi detida e encarcerada, prisão que durou apenas seis meses, pela ausência de crimes e por pressão popular.

Poder

Ao sair da cadeia, Santa Dica já era uma mulher para lá de conhecida e poderosa, algo que só aumentou quando se casou com Mário Mendes, jornalista do Rio de Janeiro radicado em Goiás e que se tornaria prefeito de Pirenópolis alguns anos depois. Já antes disso, Santa Dica tinha enorme influência na região, ainda organizando forças com centenas de homens.

Um batalhão deles chegou a ser destacado para lutar na Revolução Constitucionalista de 1932. Ainda que não tenha desaparecido, a fama desta mulher misteriosa foi minguando no decorrer do tempo. Ela deixou Lagolândia e veio morar em Goiânia, onde morreu em 1970, praticamente no anonimato. Alguns de seus cinco filhos biológicos e dois adotivos também passaram a viver na capital. A curiosidade em torno dela, entretanto, continuou a alimentar publicações de livros e realização de documentários.

O livro Santa Dica – Encantamento do Mundo ou Coisa do Povo é uma das contribuições mais consistentes para a compreensão dos episódios de Lagolândia nos anos 1920 e 1930. Algo que ganhou repercussão nacional à época. O volume traz, por exemplo, um poema dedicado à líder messiânica escrito por Jorge de Lima, um dos autores mais influentes do gênero do País no século passado.

Além disso, há a reprodução de um desenho da jovem milagreira, saído do lápis de ninguém menos que Tarsila do Amaral, ícone do Movimento Modernista de 1922. A obra promove um mergulho profundo nos fenômenos que misturaram religiosidade e miséria rural no Brasil nos séculos 19 e 20, faz uma ampla descrição da sociedade goiana daquele tempo – e das estruturas arcaicas que permaneceram dela – e compila documentos históricos. Uma leitura e tanto.

Lançamento do livro: Santa Dica – Encantamento do Mundo Ou Coisa do Povo

Autor: Lauro de Vasconcellos

Data: Hoje, às 19 horas

Local: Livraria da UFG da Faculdade de Educação (Praça Universitária, Setor Universitário)