Porque a ignorância é e sempre será vizinha da maldade

16 de agosto de 2014

Pesquisas mostram que cada um de nós tem um potencial de violência muito maior do que pode imaginar. O que fazer quando a gente se pega fazendo o mal? 

Elder Dias

Em Goiânia, uma série de assassinatos, aparentemente sem motivação e praticados por alguém (ou “alguéns”) conduzindo motos, vitimam mulheres desde o início do ano. A situação impressiona de tal maneira que chegou-se ao ponto do levantamento de uma suspeita, investigada agora pela polícia — que durante muito tempo descartou essa possibilidade —, de estar em curso a ação de um serial killer na cidade. O terror se espalhou entre as mulheres, especialmente as que se encontram em locais abertos, como ruas, praças, lanches ou pontos de ônibus.

Daí vem a exemplificação número 1 da maldade. Como se diz popularmente, “não se fala de outra coisa” em Goiânia. Aproveitando-se do estado de espírito recheado de tensão, certos condutores de moto, ao avistarem mulheres sozinhas, ou em pequenos grupos, passaram a diminuir a velocidade ou até parar seu veículo perto e fazer a menção de retirar alguma coisa do bolso, como o celular. É o que basta para muitas delas se assustarem e até correrem, em pânico. Um amigo, relatando um das cenas que viu, disse que uma mulher chegou a tropeçar em frente a um restaurante, em fuga desesperada depois de ser vítima do trote.

Em 7 de junho, às vésperas da Copa do Mundo, o ex-jogador Fernandão, que começou sua carreira no Goiás, tornou-se capitão do Internacional campeão mundial em 2006 e é idolatrado pela torcida do time gaúcho, morreu em um acidente de helicóptero em Aruanã (GO), às margens do Rio Araguaia, onde costumava descansar. A tragédia com o ex-jogador comoveu o mundo do futebol em geral, mas principalmente os torcedores do Inter, onde se deu o auge de sua carreira e sua figura é lendária.

Vem então a maldade em uma exemplificação número 2. No domingo, 10, primeiro clássico Gre-Nal após a morte do ídolo do arquirrival, os torcedores gremistas, cercados pela maioria de colorados no Beira-Rio, entoaram um grito, como provocação: “Ô, o Fernandão morreu, o Fernandão morreu, o Fernandão morreu!” A manifestação debochada de algumas dezenas de torcedores no estádio — que causou repulsa severa até mesmo à diretoria do Grêmio — não passou despercebida pela viúva do atleta. Mãe de três filhos, Fernanda Costa presenciou o fato e depois postou seu comentário sobre o acontecido em redes sociais. “Fiquei triste, porque meus filhos estavam lá [no estádio], era o primeiro Gre-Nal deles, e era Dia dos Pais”, publicou.

Nesta quarta-feira, 13, o candidato à Presidência da República Eduardo Campos (PSB) morreu em um acidente em Santos (SP), depois de seu avião ter problemas na aterrissagem no Guarujá, município vizinho do litoral paulista, e o piloto ser obrigado a arremeter. A aeronave caiu no bairro Boqueirão, sem deixar sobreviventes entre seus sete ocupantes.

Exemplificação número 3 da maldade. Menos de uma hora após a tragédia ser confirmada pelos noticiários, banners virtuais se espalhavam pela internet ligando com sarcasmo a presidente Dilma Rousseff (PT) à morte do concorrente. “Mandei derrubar mesmo. E se reclamar derrubo o do Aécio [Neves, candidato do PSDB]”, dizia a frase em uma foto da petista com a faixa presidencial. Muitas piadas de humor duvidoso surgiram instantaneamente na web. Uma delas: “Outra má notícia: o avião da presidente Dilma posou com segurança em Brasília”, que teve variações incluindo o nome de Aécio e também o do governador Marconi Perillo (PSDB).

Na rua, no estádio ou na rede social, ou em uma rodinha entre amigos, quando ocorre algo do tipo a reação de boa parte é tomar o fato pela graça que enseja. Com humor, convencionou-se que tudo pode e tudo é permitido — e daí foi grande a crise que ocorreu quando do caso em que Rafinha Bastos, então no “CQC”, disse que “comeria ela e o bebê”, ao comentar a notícia de que a cantora Wanessa Camargo estaria grávida. O resultado não foi engraçado para o humorista: um processo e uma condenação na Justiça, em primeira instância, para pagar uma indenização de R$ 150 mil.

Mas a maioria das maldades feitas sob a guarida do humor passa longe da penalização. Na verdade, ninguém nem mesmo pensa que elas possam, ou devam, ser punidas. Então, a base para que esse tipo de conduta maligna — sim, é um contrassenso achar que maldades, mesmo as que consideremos pequenas, possam ser benignas ou mesmo não neutras — prolifere é o mesmo de todas as outras violências: a impunidade.

Constatações científicas

Pesquisas mostram que cada um de nós tem um potencial de violência muito maior do que pode imaginar. Alguns estudos são clássicos. Na década de 60, o norte-americano Stanley Milgram desenvolveu um trabalho que verificou que o ser humano é capaz de, submetido a uma autoridade, afligir dor a seu semelhante até níveis insuportáveis, no que ficou conhecido como a Experiência de Milgram.

Seu compatriota Philip Zimbardo pôs universitários voluntários numa instalação que simulava um presídio, dividindo-os aleatoriamente entre guardas e presos. Em pouco tempo, os primeiros transformaram-se em guardas violentos e sádicos; os últimos, em prisioneiros perturbados. O experimento rendeu o livro “O Efeito Lúcifer: Entendendo como Pessoas Boas se Tornam Diabólicas” (Record, 759 páginas). Enfim, ambos demonstraram que mesmo o mais tranquilo dos homens cometeria atos horripilantes, caso recebesse ordens para tanto ou estivesse em ambiente propício.

Outros estudos veem pessoas que agem de forma violenta por uma questão de hierarquia não apenas movidas por uma obediência cega, mas também por demonstrar satisfação ao realizar atrocidades.

Quem é capaz de crueldades não seria, portanto, só um ser passivo diante de ordens, mas também se identificaria e até se regozijaria com esses abusos. Mais: acreditando estar fazendo o correto. O que está em disputa entre a teoria de Milgram e esta última pode ser colocado em um caso memorável — o do julgamento do tenente-coronel Adolf Eichmann, responsabilizado por conduzir a logística que levou à morte milhões de judeus. O dilema foi eternizado no livro “Eichmann em Jerusalém”, de Hannah Arendt.

É por meio desse fato que na obra a filósofa alemã desenvolve a teoria da “banalidade do mal”, pelo que ela investiga como o Estado era capaz de igualar o exercício de tal violência exacerbada a um mero cumprimento da atividade burocrática. E é assim que ela transforma Eichmann, um suposto monstro, em um mero cumpridor de ordens do sistema. Mais do que o caso em si — pelo qual, ressalte-se, a incompreendida judia Hannah sofreu hostilidade de seus irmãos de raça —, o princípio leva a uma incômoda e necessária reflexão: confrontados com situações do dia a dia, quem, em um exame de consciência, pode dizer que nunca foi vítima de uma situação em que, de certa forma, tenha sido um burocrata a serviço da maldade?

“Fazer a coisa certa é como atingir um alvo a 50 metros”, diz filósofo

O filósofo e articulista Gonzalo Armijos Palacios, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), diz que há dois sentidos que se misturam quando se fala de mal e maldade. “Há o que individualmente se sente e o que a sociedade sente, por conta de seus códigos éticos e morais, sem os quais não se vive”, explica.

Ocorre que as palavras “moral” (do latim “mores”) e “ética” (do grego “ethos”) falam da mesma coisa: os alardeados “bons costumes”, que, nos tempos de hoje, passaram a ser um chavão considerado de origem reacionária. Na verdade, há relatos de que o termo “moral” se origina a partir da dominação do Império Romano e a tentativa de traduzirem, então a palavra grega para o latim.

A palavra “ethos” tem a ver também com “habitat”, no sentido de se adequar para sobreviver em um determinado espaço (“habitat”), tendo alguns costumes e não outros. “Isso permite a sobrevivência do grupo”, lembra Gonzalo. “A palavra ‘ética’ tem essa ambivalência, significando a adaptação do grupo ao ambiente e a do indivíduo ao grupo.” O professor e filósofo lembra que tanto Aristóteles como Platão acreditam que aquilo que poderíamos chamar de “eticidade” tem de estar fundamentada no hábito. “Temos de agir corretamente. Não necessariamente nascemos éticos, nascemos necessariamente sociais, mas não éticos. Não são sinônimos. Necessitamos uns dos outros , mas a ética depende de um processo.”

Dessa forma, se um grupo faz alguma coisa contra seu próprio ambiente, ninguém vai poder sobreviver ali. “Então, nesse caso fazer o bem e fazer o mal passam a ser algo objetivo”, ressalta o professor. O que leva a deduzir que um nazista como Eichmann, então, não teria outra coisa a fazer do que o que fez, naquele ambiente ideológico? Pode ser.

Em casos subjetivos, porém, pode-se gostar de “x” e desgostar de “y”, sem concordância com o grupo. Uma questão de idiossincrasia, em que o que faz bem a um pode não fazer a outro. “Trazemos nossas tendências e inclinações, que não se adequam ao que o grupo precisaria de nós. Então há uma tensão muito problemática, e nem sempre vamos aceitar as imposições do grupo.”

É o que ocorre, por exemplo, quando há a postagem de um vídeo com uma pegadinha de mau gosto em uma rede social. A tendência é de que a maioria que comente vá aprovar (“curtir”) o vídeo, mas grande parte talvez o condene silenciosamente. Pelo sentimento de grupo, poucos vão externar sua opinião contra a “maldade”. No fim, ainda que haja uma condenação, a maioria que tiver acesso ao vídeo vai sentir uma espécie de prazer, ainda que interdito a si mesmo. É o mesmo que faz com que se propaguem piadas de conteúdo racista ou discriminatório, fotos de corpos mutilados e cenas de espancamento: o uso do instinto em vez da razão. A conduta “em bando” traz um salvo-conduto para o ato de espalhar esse conteúdo, em condição semelhante à da obediência a um chefe. No caso, a “ordem” é repetir o comportamento do grupo.

“Na vida, agir corretamente é como atirar em um alvo a 50 metros: é muito mais fácil errar do que acertar. Somos dominados pelas paixões, e isso é por toda a vida. Estamos sempre sendo expostos a que nossas paixões aflorem. E, em algum momento elas vão aflorar”, conclui Gonzalo. E ele vai além: “Até mesmo a razão é um instrumento das paixões. A razão é escrava das paixões. Eu, Gonzalo, quando escrevo um artigo motivado por uma indignação, estou colocando a razão como instrumento das minhas paixões.”

Parar na faixa ou assustar a velhinha?

Pensei nesta pauta depois do exemplo número 1 dado na abertura do texto principal, mas antes da ocorrência dos dois últimos. Era ao mesmo tempo algo inconcebível e intrigante ouvir relatos (ao todo, quatro) de pessoas que passaram ou viram alguém passar por uma situação de “pegadinha” tendo como pano de fundo uma questão tão séria como a da sequência de mortes de mulheres em Goiânia.

Pensar na maldade como algo além de atrocidades e torturas — na maldade não necessariamente com violência física, mas uma maldade ao mesmo tempo sutil e avassaladora — é adentrar em um território que, lá mais adiante, cedo ou tarde (nem tão tarde) vai encontrar cada um de nós. Somos todos habilitados a praticar o mal e, como diz o professor Gonzalo Armijos, é bem mais fácil errar do que acertar o alvo, no que diz respeito a fazer a coisa certa.

Para as grandes coisas é preciso planejamento, tempo e dedicação. Assim é quando alguém está por conta de fazer algo “grandioso” ou “maquiavélico — palavras que, pelo uso, adquiriram, “per se”, uma conotação positiva e outra negativa, respectivamente. O bem e o mal de grande porte são trabalhosos, exigem dedicação.

Por outro lado, se grandes coisas, para o bem e para o mal, precisam ser construídas com persistência, para pequenos gestos a oportunidade bate diuturnamente à porta. Estamos, então, sempre aptos a fazer uma pequena maldade e uma bondade singela. E, às vezes, uma “ou” outra: ao ver uma senhora idosa esperando para atravessar a faixa, há a opção entre parar educadamente ou acionar a buzina para assustá-la, passando direto. A gentileza ou a brutalidade, ao alcance de cada um.

O que decidimos fazer (comportamento), na maioria das vezes, tem a ver com as práticas (hábitos) que adquirimos. Cada um, durante a vida, passa a ser, de certo modo, escravo do que construiu para si — daí os adágios como “pau que nasce torto morre torto” parecerem tanger a verdade.

A boa notícia para quem se pega fazendo o mal e não está bem com isso — porque, sim, há os que sabem que fazem mal e vão continuar a usar o livre arbítrio para seguir a fazê-lo — é que o ser humano pode se readaptar. Passar a questionar o que hoje se faz diariamente no modo automático — como lidamos com as redes sociais, como reproduzimos pensamentos machistas ou vertentes autoritárias etc. — é um modo de ir dando uma guinada para o questionamento de crenças consolidadas, porém nada saudáveis, como “quem não quer ver o vídeo do acidente, que não abra” ou “os incomodados que se retirem”. Mudar crenças muda hábitos e impacta o comportamento. Se somos muito mais paixão que razão, ainda assim seremos melhores se melhor usarmos o máximo dessa parte minoritária. (Elder Dias)

Fonte: Jornal Opção

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