Os últimos tiroteios no meio da mata, as derradeiras capturas, os desaparecimentos que deram fim à Guerrilha do Araguaia, um dos mais importantes e simbólicos focos de resistência armada à ditadura militar brasileira, ocorreram há quase 40 anos, em 1975. O sofrimento da população da região do Bico do Papagaio, fronteira do então Norte Goiano (hoje Tocantins) com o Pará, porém, não terminou ali. Ele perdurou pelas décadas seguintes, fazendo daquele pedaço do Brasil um dos mais perigosos do País, com sangrentas lutas pela posse da terra, crimes sem punição, garimpos onde se amontoaram vidas e um coronelismo mantido à base de ameaças e pistolagens. Esta é a realidade que o professor da UFG Romualdo Pessoa Campos Filho, considerado uma autoridade nas pesquisas sobre a Guerrilha do Araguaia, conta em sua mais recente obra.

Ele autografa hoje, a partir das 19 horas, na sede da Associação dos Docentes da UFG (Adufg), na 9ª Avenida, Setor Vila Nova, o livro Araguaia – Depois da Guerrilha, Outra Guerra, em que descreve o que aconteceu à região localizada nas duas margens do Rio Araguaia entre os anos de 1975 e 2000. “Acho que nós não escolhemos determinados temas e sim eles nos escolhem”, afirma o pesquisador, que com seu livro Guerrilha do Araguaia – A Esquerda em Armas, lançado pela primeira vez em 1997 e reeditado em 2012, tornou-se uma referência nacional para tudo o que se disse sobre a guerrilha a partir dali.

“Quando iniciei minha tese de doutorado, este não era o objeto de pesquisa. Estava engatilhando outro tema. Mas minha participação em grupos de investigação sobre os desaparecidos do conflito me levou de volta à região. Aí ficou difícil sair”, justifica.

A nova obra é o resultado deste novo fôlego em busca de respostas. Romualdo integra o grupo de trabalho incumbido de localizar os restos mortais da maior parte dos militantes políticos ligados ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) que decidiram montar um foco de guerrilha rural, aos moldes do que havia sido feito em Cuba por Fidel Castro e Che Guevara, e que foram exterminados por missões especiais das Forças Armadas. Essa atuação o fez perceber que os efeitos daqueles anos sangrentos na década de 1970 continuavam, transformados, mas igualmente arrasadores para as comunidades locais.

“A luta pela terra na região foi absorvida pela Lei de Segurança Nacional, o que é uma herança direta das ações militares por conta da Guerrilha do Araguaia. Houve o enquadramento nesse dispositivo de padres, camponeses, políticos”, observa.

Uma sequência de eventos trágicos e tragédias humanas ocorridas na área demonstra, segundo Romualdo, a participação efetiva de agentes militares. O primeiro desses episódios se deu logo após o fim da guerrilha, ainda em 1975, e ficou conhecido como A Revolta dos Perdidos.

“Houve a ocupação de propriedades da antiga Fundação Brasil-Central por parte de camponeses. Havia registros de terras griladas. Uma equipe do Incra esteve na região, mas foi hostilizada. Ela, então, retornou com reforço policial, mas foram tocaiados. O governo enviou então uma tropa bem maior para retirar os camponeses das terras e houve novos embates. Muitos agricultores fugiram para a mata. Alguns dos líderes rurais eram os que auxiliaram os guerrilheiros. Ocorreram prisões e abusos. As coisas só se resolveram porque a Igreja pressionou”, relata o pesquisador.

CORONEL

Romualdo afirma que parte dos episódios de violência que aconteceram no Bico do Papagaio e sul do Pará depois do extermínio da Guerrilha do Araguaia responde pelo nome do coronel Sebastião Curió. Figura poderosa na região, ele participou das operações que caçaram os militantes de esquerda pelas matas e é visto como a única pessoa que poderia esclarecer os desaparecimentos ocorridos durante os combates.

“Ele, porém, não fala”, lamenta o professor. Mas manda muito. “Curió montou uma forte estrutura de poder na região, criando um clima que o favorecesse. Ele mandava informes ao governo dizendo que persistiam ameaças de revoltas comunistas. Há no Arquivo Nacional provas dessa atuação”, conta Romualdo. Em 2012, Curió foi denunciado pelo Ministério Público por sua participação na repressão aos militantes do Araguaia.

Com o tempo, porém, Curió tornou-se uma autoridade no local. Uma cidade foi fundada com o seu nome, Curionópolis, e as equipes de busca que chegaram ao Bico do Papagaio e ao sul do Pará para tentar encontrar mais pistas dos participantes da guerrilha se depararam com dificuldades iniciais. “Havia um clima de medo. Ele pouco aparecia pessoalmente, mas seus homens estavam espalhados, intimidando a população, que temia dar mais informações sobre a época dos confrontos”, lembra Romualdo.

A situação só mudou há cerca de dez anos, quando uma força-tarefa foi montada para combater essas atitudes. Fatos violentos, porém, estão longe de ser cenas pertencentes apenas ao passado.