O mundo fantástico de Beto Cupertino

Data: 28 de agosto de 2014.

Veículo: Diário da Manhã. 

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Enviado em 28/08/2014 às 19h45

O mundo fantástico de Beto Cupertino

DIÁRIO DA MANHÃ

VICTOR HUGO LOPES

 

O livro “Espetáculos da Desrazão, primeiro romance de Beto Cupertino, atualiza o realismo fantástico, consagrado por George Orwell e Gabriel García Marquez, com uma narrativa recoberta por múltiplas camadas. O autor é mais conhecido por aqui como o vocalista do Violins, uma das bandas mais interessantes a surgir no país nos últimos 15 anos. Sua estreia na literatura é muito bem vinda.

Nós, jornalistas, por vezes somos injustos com o talento alheio. Músico é músico. Artista plástico é artista plástico. Tudo preto no branco. Nem sempre se percebe as diferentes nuances de artistas que são, por inquieta natureza, multifacetados. Acredito que é o caso de Beto Cupertino, mestre em Filosofia pela UFG e compositor inspirado.

Espetáculos da Desrazão, como uma obra aberta à interpretação, possui referências variadas e criativas. Suas variadas referências filosóficas e literárias tornam a leitura uma experiência intrigante e contínua. É daqueles textos que se consome em um único fôlego. O volume, publicado pela Editora Ius, de Belo Horizonte, foi publicado no primeiro semestre e já está disponível nas livrarias.

A Cidade, terra fictícia, abriga um rico universo metafórico de opressão das liberdades. Um ambiente gerido por dirigentes sem nome, rigoroso em matéria penal, com controle quase absoluto sobre o comportamento das pessoas. Um Estado policial permanente. Todo erro é punido com sofrimento sobre o corpo. Não há proporção entre pena e crime: a não tolerância ao equívoco cria uma rígida sociedade, em que os ofícios são repassados de pai para filho, onde o tempo não corre como algo natural, mas fantasmagórico e impressionista.

Assim é a vida na Cidade. Um legado contínuo de atividades hereditárias, que seguem o nome como um sobrenome que define o indivíduo. Dos olhos vigilantes de Martíria, a Insuportável Vigia de Janelas, à aparente insegurança de Adrian, o Ilustre Criador do Nome de Todas as Coisas, a vida é uma sucessão de atos restritivos e mecânicos.

Neste ambiente autoritário, autômato, não se pode adoecer. E, em razão de patologias, pessoas são destituídas de funções e perdem relevância. Beto Cupertino cria uma sofisticada alegoria a partir da febre da Capivara, doença que provoca “delírios leves e fome insaciável”, cujos casos mais graves implicam na execração pública do paciente. A doença como expressão física do corpo, como ato subversivo, aos valores de perfeição que não admitem erro.

A partir da punição aplicada à Évora, Douta Professora de Todas as Escolas, vítima da febre da Capivara, um grupo de pessoas deixa a Cidade, liderado por Adrian, e migra para a floresta. Refugiados em meio ao mato, planejam reagir à opressão urbana ao propor uma nova sociedade, na qual o erro seria permitido. Assim, os rebeldes elaboram uma invasão e instauram uma nova ordem, republicana, cujos efeitos são, a rigor, uma curiosa metáfora da convivência social de nossos dias.

Espetáculos da Desrazão retoma a estética do absurdo como excelente ferramenta narrativa para debater a vida contemporânea em suas nuances mais urgentes: o imenso trafego de informações, a liberdade praticamente plena do mundo virtual e a dificuldade para se construir uma sociedade de consenso. Não é uma representação fácil de ser construída.

Beto Cupertino tece sua narrativa em um agradável estilo pessoal, acessível e rico em simbologias. O autor não dirige o leitor mais do que o necessário; não o conduz a destinos certos. Apenas o apresenta à realidade absurda daquele universo e o deixa, à moda dos personagens, livre para tirar suas próprias conclusões.

O estilo do autor, direto e sempre impressionante, é um prato cheio de referências intelectuais. Não são poucas as sutis menções ao estudo de Foucault sobre o panóptico, as idéias de Tocqueville sobre a democracia, as necessárias limitações da vida em sociedade apresentada por Hobbes, Montesquieu e Locke, e a redescoberta da pureza que Rousseau sustentou como retorno à condição selvagem.

Espetáculos da Desrazão metaforiza a condição humana a partir de uma simbologia que, de tão absurda, nos é assustadoramente próxima e real. Beto Cupertino, ao revitalizar o realismo fantástico em uma narrativa ágil, sofisticada e acessível, insere-se no panteão de escritores do primeiro time. Empresta àquela categoria literária um frescor que há muito não se via.

(Victor Hugo Lopes, jornalista)









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