Entre a lenda e o folclore

31 de agosto de 2014

Veículo: Diário da Manhã

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_ Fala, grande!

Aquela voz inconfundível, no meio do asfalto, na curva um do Autódromo de Goiânia, onde cansado, eu fazia o repouso ativo de mais um tiro de corrida intervalado. Certeza, era ele: o Neném!

 

_ Vai dar uma puxada? Vamos juntos?

 

            Sempre desafiador, sempre engraçado, quase histriônico. Era o melhor jogador de futebol que já havia visto. E olha que eu fui aos estádios durante toda a minha vida. Correndo na casa dos quatro quilômetros por minuto, não pude resistir:

 

_ Saio em trinta segundos, são dois quilômetros.

 

Nem precisei olhar para ele e saber que o sorriso folgazão abria em seu rosto. Lembrei-me na mesma hora em que praticamente vencera os 100 metros rasos nas "Olimpíadas da UFG" com quase dois corpos de vantagem. Nesse instante ele levantou o braço para comemorar, perdeu o equilíbrio e rolou no chão em uma perfeita cambalhota. Levantou e chegou em terceiro.

Neném era assim. Surpreendente. Naquele dia o público inteiro rira dele. Eu não. O admirava. Mas ele era um tipo de palhaço, um "clown" na Faculdade de Direito, e as meninas; adoravam. Não sei se ele ligava ou não para as gozações e apelidos -era muito magro- mas mantinha a linha.

 

No Jóquei Clube de Goiás, na quadra de futebol de salão, ninguém o escolhia. Era bom demais e individualista ao extremo. Habitualmente seu time vencia, mas as atenções eram voltadas todas para ele, somente para o Neném. Agachava diante do adversário - flexível e leve - e driblava-o sem dó. Um chapeuzinho de chaleira, uma bola debaixo das pernas, seu repertório era praticamente infinito. Certa feita, fez isso na frente de um colega do caratê, levou um "ken" na boca e caiu sangrando, reclamando e querendo brigar. A maioria achou que ele merecia, havia provocado. Mas ser bom de bola e fintar eram crime?

Correndo forte e me segurando para o sprint final, vi que Neném estava lado-a-lado, não sei se poupando ou dando tudo de si. Seu rosto frisado, passadas bem mais largas do que as minhas, as mãos na altura do umbigo, não fazia barulho ao correr. Um atleta nato. Obviamente que ele conhecia as marcações da pista. Sabia que faltavam quatrocentos metros, disparou. Segui-o com o meu melhor. Já aos cem metros ele cedera e o ultrapassei. Venci-o como num tango de Gardel, "Por una cabeza".

 

_ Voando baixo, como está seu pai? Eu me lembro dele, parecia o Charlton Heston, sabia?

 

_ Faleceu há um mês.

 

            Na hora veio à memória aquele homem enorme, de voz grave e belo, que na velhice ficara hemiplégico e intransigente. Cuidei dele como pude, meu irmão ainda mais; também. Ficara um arremedo do mito que fora. Como numa entrevista de Michel Moore com o ator de "Planeta dos Macacos", "Ben Hur" - e outros filmes épicos - sobre armas. Quase caricato.

 

_ Sinto muito, e o seu filho? Está nadando?

 

_ Meu filho parece com o Tarzã, o Johnny Weissmuller. Mas é maior e bem mais forte.

 

            Naquela época ele era um recordista e campeão. Hoje ficou tão imenso que dá medo, tem 195 cm e uns 100 quilos, faz musculação, está exagerado. Nem eu e nem a mãe dele gostamos. Mas o sorriso de menino ainda permanece, tenho esperanças de que volte a nadar e não seja apenas um grande macaco.

 

_ Poxa, amigão, ganhou! Aqui ninguém da minha equipe de triatlo ganha de mim. Por falar nisso, eu acho que eu nunca disse com quem você parece...

 

_ Ah, Neném. Essa não! E eu lá tinha apelido?

 

_ Trinity. Aquele palhacinho do cinema. Engraçadinho, mas muito rápido. Muito.

 

            Aquela surpresa fora totalmente insólita. Eu, parecer com um ídolo de infância e ainda mais - pela ótica de Neném - ser taxado de bobo da corte. Talvez nós não percebamos, mas as pessoas diferentes tem isso... uma tênue linha as separa do lendário e o folclórico. Para alguns seus feitos serão inesquecíveis e admiráveis e para outros serão apenas um chiste, uma transgressão de si mesmos.

_ Até, Neném. Até!

_ Tiau, Johnny Boy, da próxima vez eu vou ganhar, essa eu deixei.

 

(JB Alencastro é médico)

Fonte: Diário da Manhã

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