O Cerrado em extinção

Data: 10 de setembro de 2014

Fonte/Veículo: Jornal Diário da Manhã

 

Hoje comemora-se o Dia Nacional do Cerrado, este que se encontra em precárias condições de preservação

DIÁRIO DA MANHÃ
DIVANIA RODRIGUES

O jardim das plantas tortas foi visto e vencido pelos bandeirantes colonizadores que chegaram atrás do dourado, que nomeava serra e pintava o chão – não com as flores de ipês da estação. Com eles a civilização tocou o Cerrado, plantou, colheu e povoou a terra. Desmatou-se em grandes proporções e criaram-se animais domesticados, primeiro para subsistência e posteriormente para a venda em grandes empreendimentos agrícolas.  

 Hoje se comemora o Dia Nacional do Cerrado. Mas, o que é o Cerrado e o que o faz ter características tão típicas? O Cerrado existe desde quando e até quando subsistirá? Altair Sales Barbosa, professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e diretor do Instituto do Trópico Subúmido, afirma que esse característico sistema biogeográfico do coração da América do Sul, está em um processo irreversível de extinção.

 

Foto: Sandra Ramos

Foto: Sandra Ramos

Criador da escola teórica denominada de ecologia cultural, que usa as relações ambientais para tentar esclarecer a maneira como o homem vive e organiza seu espaço dentro do ambiente, o professor – formado em Antropologia-Geral, com doutorado em Arqueologia Pré-Histórica,  pós-graduações nas áreas de geologia e meio ambiente –  aponta o que levou a estudar o Cerrado. “Para explicar a organização social tem que mergulhar a fundo naquele ecossistema em que o homem está implantado”, declara.

O que é o cerrado

O Cerrado foi, conforme o professor, a mais diversa flora do planeta e a mais rica em frutos comestíveis. Os ancestrais dos índios atuais, quando se depararam com o bioma, teriam ficado encantados e o teriam nomeado de jardins das plantas tortas. Por causa da grande quantidade de frutos comestíveis e das árvores características com galhos retorcidos. O Cerrado também teria uma grande quantidade e diversificada na fauna, com animais de pequeno, médio e grande porte e há seis milhões de anos também existia a megafauna com animais agora extintos. 

O ecossistema teria ocupado, de acordo com os estudos, dois milhões de quilômetros quadrados, hoje o restante é de cerca de 20% do total. O Cerrado ocorria no leste de Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Piauí, Goiás, Distrito Federal, oeste da Bahia, noroeste de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, partes isoladas em São Paulo, Paraná e nos tabuleiros do Nordeste. Ocorre de forma adjunta também em Rondônia.

As árvores mais típicas e que fazem as pessoas se lembrarem do bioma, são as que se mostram retorcidas. Servindo como referência para músicas e poesia, pois como disse Nicolas Behr: “Nem tudo o que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado.”

A tortuosidade dos galhos dessas árvores, que estão geralmente em um subsistema particular, o stricto sensu, ocorre por causa da pobreza do solo. “O solo é o oligotrófico, carente de nutrientes básicos, então a planta suga o máximo possível e acumula açúcar que se aloja na bifurcação das plantas, dando-lhes essa característica”, explica Altair.

De acordo com o especialista, o Cerrado é um sistema biogeográfico composto por diversos subsistemas – o de campos, do Cerrado, do cerradão, das matas, das matas ciliares, de veredas e ambientes alagadiços. Mas não é considerado pelo pesquisador como uma savana como era definido tempos atrás. “Qualquer intervenção ou degradação, ou modificação brusca em qualquer um desses subsistemas afeta o sistema como um todo”, informa.

 Os estudos demonstram que o Cerrado tem no mínimo 65 milhões de anos, sendo mais antigo do que a Amazônia, a Mata Atlântica, a Caatinga e a Savana Africana. “É o ambiente mais antigo da história recente da terra”, afirma o professor. 

Para o diretor, o Cerrado já atingiu seu clímax evolutivo e, como tal, se degradado não pode ser recuperado. “Esse é o grande problema do Cerrado. É uma área que possuía a maior diversidade do planeta, que foi devastada de tal maneira que essa biodiversidade não existe mais e não pode ser refeita”, afirma.

Altair Sales também explica que pela formação geológica do Cerrado, pela quantidade de arenito e calcários de idades diferenciadas, em função de ser um planalto e ter uma vegetação nativa peculiar – que apresenta apenas um terço acima do nível do solo e dois terços abaixo do solo – proporcionou as condições para a formação dos três maiores aquíferos do mundo. São esses o Guarani, o Bambuí e o Urucuia, que formam os rios responsáveis pelas grandes bacias hidrográficas do continente Sul-Americano.

 

“Hoje esses aquíferos já chegaram ao seu nível de base, porque a vegetação nativa que os alimentava através da água captada da chuva não existe mais. A cada dia que passa os níveis vão baixando mais e o nível dos rios vai diminuindo”, informa o professor. Ainda afirma que estudos dão conta que por causa desse fenômeno pelo menos dez rios desaparecem na região do Cerrado e outros diminuem sua vazão.

 

Restauração do equilíbrio

A mata nativa não pode ser restaurada, outras plantas podem ocupar seu lugar, porém elas não terão a mesma função ecológica, já que a primordial está dois terços abaixo do solo. “É impossível fazer uma recuperação. Em se tratando dos aquíferos, o mais recente, como o Urucuia, tem 65 milhões de anos que vem sendo formando. Ia precisar de muito tempo para recarregar esses aquíferos”, afirma o pesquisador.

“De 1970 para cá, os chapadões do Cerrado foram invadidos pelo grande capital, financiados inclusive por bancos estatais, que cantam vantagens quando acontecem as safras recordes. Isso é apenas um fenômeno passageiro”, acredita Altair Sales. Para ele, provavelmente em um futuro próximo – que contabiliza em cinco anos – as lavouras, as grandes áreas começarão a ser abandonadas por falta de produtividade. 

“E como essas áreas foram desertos, as plantas que vão nascer aí são típicas de deserto, como já tem aparecido em alguns lugares. Estas são incapazes de suportar tempestades e ventanias e isso vai gerar nuvens de poeira e terra. Tudo isso está previsto cientificamente”, explana com pessimismo.

Na opinião dele, uma possível melhoria seria a conscientização das pessoas para o problema que afeta a vida delas. “A escola difunde muito os males que se pratica contra o ambiente físico, o homem é parte integrante do meio ambiente e é afetado indiretamente por essa destruição, então somente o conhecimento é incapaz de fazer você mudar de atitude. Para isso acontecer é preciso ter consciência do problema”, afirma.

 O pequi – o ouro do Cerrado

Dourado como o ouro que os bandeirantes vieram buscar nessas terras, há quem o ame e quem o odeie. Nessa época do ano, pelas ruas da cidade e nos acostamentos das rodovias eles são oferecidos a quem passa em bacias de alumínio – já abertos – e em sacos – ainda in natura. O cheiro forte e característico é sentido ao longe, mesmo que ainda não tenha sido cozido. 

“O pequi é uma planta pertencente à classe Magnoliopdida (Dicotiledonae), ordem Guttiferales, família Caryocaraceaee ao gênero Caryocarl. As espécies mais comuns do gênero Caryocaré a espécie C. brasiliense, a qual possui o menor porte entre todos. Os frutos alcançam a maturidade entre três e quatro meses, após a floração, sendo considerado drupa, de coloração verde, epicarpo coriáceo carnoso e no seu interior podem ser encontrados de 1 a 4 pirênios. Esses frutos são duros e volumosos, formados por grande quantidade de espinhos delgados, agudos, finos e pretos, envolvidos pelo mesocarpo, endocarpo lenhoso espinhoso e com uma amêndoa interna grande e carnosa. Os pirênios são cobertos por uma polpa amarela, pastosa e oleaginosa, rica em óleo, carboidratos, proteínas e vitaminas”, descreve a professora Clarissa Damiani, 39 anos, engenheira de alimentos.

Clarissa Damiani é pesquisadora na área de frutos do Cerrado e diz que se apaixonou pela questão assim que ingressou na pesquisa. O pequi foi material de estudo da dissertação de mestrado. “Ele é um fruto muito versátil que possui muitas alternativas de consumo alimentar.”

Para ela o pequizeiro (Caryocar brasiliense) “é o símbolo máximo da goianidade, embora seja encontrado também nos Estados de Rondônia (ao leste), Mato Grosso, Mato Grosso do Sul (no nordeste), Pará (sudoeste), Tocantins, Maranhão (extremo sul), Piauí (extremo sul), Bahia (oeste), Distrito de Federal e Minas Gerais (norte e oeste)”.

Seu uso teria começado nas antigas vilas do Meia Ponte (hoje Pirenópolis) e Vila Boa (cidade de Goiás), ainda no início do século XVIII. “Entretanto, no rico sul goiano, mais especificamente na região que cerca a cidade industrial de Catalão, ele era utilizado somente para a fabricação do lendário sabão de pequi, de reconhecidas propriedades terapêuticas, uma vez que a região era influenciada pelos triangulinos, povo de origem paulista-goiana, cujo território foi anexado por Minas Gerais no século XIX”, explica a engenheira alimentar.

Com o pequi há várias possibilidades: “cozido no arroz ou no frango, com macarrão, com peixe, com carnes, com leite, em pão-de-queijo, em geleia, em bala de goma, no pão doce, no casadinho, no brigadeiro, no patê, em sequilhos, em croquetes, em sorvetes e na forma de um dos mais afamados licores de Goiás, cujo grande atrativo, além do sabor, são os cristais que se formam, que dizem ser afrodisíacos. Há também uma boa variedade de receitas de doces aromatizados com seu sabor”, informa a pesquisadora.

Um dos males em comer o pequi, apesar do prazer daqueles que se servem dele, é a camada logo abaixo da polpa que é recoberta por espinhos que podem ferir a língua e o céu da boca.

A pesquisadora ainda acrescenta que o óleo da polpa tem propriedades medicinais, sendo utilizado contra bronquites, gripes e resfriados e no controle de tumores. “É comum o óleo ser misturado ao mel de abelha ou à banha de capivara, em partes iguais e a mistura resultante ser usada como expectorante. O chá das folhas é tido como regulador do fluxo menstrual, o extrato etanólico das folhas apresenta atividade antitumoral, contendo o ácido oleanólico, friedelina e friedelan-3-ol, além de ?-sitosterol, estigmasterol e ácido elágico”, completa Clarissa.

Além desses usos, a indústria cosmética, ainda o aproveita para fabricar cremes e da casca e das folhas extraem-se corantes amarelos. A madeira, pela sua dureza, também foi muito utilizada na marcenaria e na carpintaria. 

Baru – outro fruto do Cerrado redescoberto

Um estudo realizado pelo Laboratório de Nutrição Experimental (Lanute) da Universidade Federal de Goiás (UFG), demonstrou que o consumo de amêndoa de baru, típico do Cerrado brasileiro, reduz as concentrações séricas de colesterol total e LDL-colesterol. A pesquisa acaba de ser aceita para publicação no periódico Nutrition, Metabolism and Cardiovascular Disease, da editora Elsevier, no ano de 2014.

 “O estudo foi conduzido utilizando-se o método ‘cross over’ ou ‘crossover’. Vinte indivíduos com hipercolesterolemia moderada foram suplementados com 20 g (aproximadamente 15 unidades) de amêndoa de baru por dia durante seis semanas. Ao final da suplementação, foi observada redução significativa nas concentrações de colesterol total (-8,1%), não-HDL-colesterol (-8,1%) e LDL-colesterol (-9,4%)”, demonstram os resultados.

Os resultados deixaram os pesquisadores animados, já que as porções utilizadas foram menores do que a de outras oleaginosas utilizadas em outros estudos, o que os fez recomendá-las para uma alimentação capaz de reduzir os riscos de doenças cardiovasculares. “Os resultados são de grande relevância para a ciência e para a saúde humana e podem contribuir para a valorização e sustentabilidade da vegetação do bioma Cerrado”, informa anúncio feito à imprensa. 

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