“Nietzsche é o filósofo da alegria”

Data: 26 de outubro de 2014

Fonte/Veículo: O Popular

 

Ele foi amigo próximo de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, dois dos mais influentes pensadores do mundo no século 20, trabalhando com eles na França e ajudando a popularizar suas obras por aqui ao promover visitas e organizar coletâneas. Aos 72 anos, Roberto Machado é um dos mais importantes filósofos do País. Mesmo aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde era professor, ele continua com suas pesquisas e um de seus objetos de estudo atuais é o debate do tempo na obra de autores como o alemão Friedrich Nietzsche e o francês Marcel Proust. Roberto esteve em Goiânia recentemente para um ciclo de palestras promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFG e concedeu entrevista exclusiva ao POPULAR. Na conversa, ele explicou suas análises, aconselhou leituras mais aprofundadas de autores canônicos e disse que literatura e filosofia fazem uma parceria rica e repleta de conhecimento.

Rogério Borges

26 de outubro de 2014 (domingo)

Divulgação

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O senhor tem uma abordagem interessante sobre o tempo em dois autores de relevância, o filósofo Friedrich Nietzsche e o romancista Marcel Proust. Gostaria que o senhor falasse um pouco dela.

Proust e Nietzsche são parte da minha reflexão filosófica atual e há uma grande relação na forma como eles abordam esse tema. Privilegiei em Nietzsche um livro em que ele se aproxima mais da literatura, que é Assim Falou Zaratustra. Essa obra é uma tentativa de fazer filosofia usando linguagem artística. Zaratustra não é um livro propriamente conceitual, doutrinário, mas sim uma obra em que abundam as imagens, as metáforas. É um livro que tem um processo de apresentação do pensamento de Nietzsche de uma maneira narrativa e dramática, inspirada na epopeia, na tragédia, mas também no romance moderno, aquele que começou na Alemanha no final do século 18 com Goethe e que é conhecido como romance de formação. Eu trabalho Zaratustra como estando ligado a esse processo de aprendizado, que diz respeito fundamentalmente a determinada concepção do tempo. Zaratustra critica o que chamam de niilismo histórico, que é o nascimento de uma concepção que privilegia a eternidade em detrimento do tempo, o que teria tido início na Grécia de Platão. O tempo seria, assim, uma imitação móvel da eternidade. A filosofia de Nietzsche reivindica o tempo em detrimento dessa eternidade que está aquém ou além do tempo, que está no início ou no fim dos tempos, como diz o cristianismo. Zaratustra não apresenta imediatamente, no decorrer do livro, uma concepção positiva do tempo. Ele começa privilegiando o futuro, depois há um desafio em encarar o passado, que é irreversível, para finalmente fazer uma apologia do instante, do presente na concepção do eterno retorno.


No caso de Proust, o próprio título de sua obra principal, Em Busca do Tempo Perdido, mostra que ele também trabalha esse conceito de forma muito intensa.

Exatamente. O que o aproxima do Nietzsche é que a ideia de romance de formação também está presente. Em Busca do Tempo Perdido é o relato do aprendizado do fazer literário. Em Busca do Tempo Perdido é uma tentativa de apresentar a descoberta da vocação do personagem central, Marcel, que se torna um grande escritor e descobre que é no fazer literário que ele pode encontrar o tempo perdido e o tempo redescoberto.


Vivemos hoje um “tempo” em que o tempo também parece ser retrabalhado. O instantâneo hoje é muito valorizado. O que Nietzsche pode nos dizer para entendermos melhor esse nosso ritmo?

Eu acho que é justamente essa afirmação do instante. O que Nietzsche critica é que o valor que se dá à vida foi perdido. Isso aconteceu pelo valor que se dá à vida futura, que seria a vida eterna e que significaria a negação do tempo como um processo que adquire sua positividade depois da morte como uma recompensa ou como uma punição de como se viveu o tempo. Mas essa não é a única negação. Quando se diz “Deus morreu”, afirma-se que os valores absolutos não existem mais no mundo burguês a partir da Revolução Francesa, num momento da filosofia que começa com Kant. Há ainda a consideração da história como processo teleológico, ou seja, de realização do homem. Como você disse, há essa valorização do instante como afirmação do passado, do presente e do futuro. Nietzsche criticou o tempo linear e prospectivo em nome da ideia de um tempo circular, onde passado, presente e futuro estão presentes na noção do instante. Para Nietzsche, a noção do instante vivido é critério para uma vida bem realizada.

 

O senhor fala da questão do tempo prometido, que extravasa nosso tempo vivido e traz um aspecto religioso forte. Tomando a famosa frase da obra de Nietzsche, “Deus está morto”, podemos defender essa ideia ou Deus vem sendo substituído por outras idolatrias?

No caso de Nietzsche é preciso saber bem quem é este substituto. Nietzsche não é o filósofo da morte de Deus no sentido de propô-la. Ele, aliás, é crítico a essa ideia. No Zaratustra, ele afirma que a morte de Deus é perpetrada pelo “mais feio dos homens”, aquele em que Deus fosse incapaz de penetrar seu íntimo, compreender e atestar sua feiura. No caso da eternidade e do tempo futuro que viesse a realizar as aspirações do tempo presente, Nietzsche considera ambos niilistas, uma negação da vida. O homem moderno reage contra a prioridade da eternidade construída pela metafísica por um pensamento que poderíamos chamar de antropológico ou antropocêntrico, que tem o homem como sentido a partir do qual são estabelecidos todos os valores e sentidos. No caso de Nietzsche, essa substituição é clara. Nele, não temos o privilégio de Deus ou do homem e sim o privilégio da vida, obtido por uma perspectiva trágica conseguida pela crítica da dicotomia entre bem e mal, sem fazer uma diferença entre o sofrimento e a felicidade. Nietzsche é o filósofo do sofrimento quando fala de várias questões da vida, mas ao mesmo tempo procura mostrar que esse sofrimento não é incompatível com a alegria. Nietzsche é um filósofo da alegria e ela está ligada a uma afirmação trágica da vida vivida em todos os momentos, a filosofia do aqui e do agora, do instante vivido.


Esse raciocínio antropocêntrico explicaria a vontade que tanta gente tem de driblar o tempo, negar sua passagem inexorável?

Sua formulação é muito boa porque Nietzsche chama isso de vingança. Ele vai dizer que a vingança é a negação do tempo e do “foi assim”, que é o passado. A postura de Nietzsche é a negação do passar do tempo. Por mais que você queira planejar sua vida para compensar o que não tem hoje no futuro, Nietzsche acha que há aí um “ranger de dentes”, o insuportável que é justamente, como você assinalou, a inexorabilidade do tempo, a impossibilidade de se modificar o passado. O passado, que poderia ser o libertador, é o que aprisiona. Seria necessário você lidar bem com seu passado, afirmando-o para que você seja capaz de afirmar o passar do tempo. Nietzsche pensa isso como a realização da própria vida, um eterno retorno com a afirmação de todos os momentos em que você tiver vivido sem criar dicotomias de valores entre bem e mal. Para Proust, isso se realiza através da obra de arte. É na criação artística que você dá valor à vida. O que o relaciona a Nietzsche é que essa questão artística tem uma concepção que privilegia a simultaneidade do tempo em detrimento de uma visão prospectiva, sucessiva. O maravilhoso nos romances de Proust é que numa mesma página você tem entremeados passado, presente e futuro. O livro que ele decide escrever no futuro é a obra que acabamos de ler no passado.


No caso de Proust, o personagem principal de Em Busca do Tempo Perdido é quase obrigado a lidar com seu passado – a famosa cena da madeleine, o pequeno doce que o faz se lembrar de uma época de sua vida – para poder escrever o livro que deseja é exemplo disso.

Foi ótimo você se referir à cena da madeleine, que é um bolinho misturado com chá de tilha. Aquilo o remete ao passado de sua infância. O que há aí é muito importante porque o que está presente é o que ele chama de “impressão sensível” de sua memória involuntária. São elementos materiais que despertam sensações que não estão ligadas àqueles objetos e sim a outros momentos vividos. A experiência da madeleine é de intensidade. As grandes questões colocadas na criação literária de Proust são como expressar as impressões. Essa noção de tempo segura a descoberta do aprendizado literário. Isso é dado por um tempo que não é mais cronológico. Na experiência do bolinho, temos um curto-circuito entre passado e presente e voltamos, assim, ao privilégio do instante.


Proust é criticado por demorar 40 páginas descrevendo uma sala ou 5 páginas para dizer como o personagem arrumou uma cortina. Esse tempo que escoa lentamente remete a um ritmo narrativo que o autor apresenta ao leitor para que a intensidade que quer expressar seja entendida?

Gosto do que Proust diz de Gustave Flaubert. Ele diz que em Flaubert as ações são substituídas pelas impressões. É isso o que Proust faz no Em Busca do Tempo Perdido. O objeto do livro é esse passar do tempo, do tempo que vai chegar. Um dia eu dei esse livro de presente a uma amiga psicanalista e por sua reação descobri que ela era uma ansiosa (risos). Ela detestou o Proust porque ele é muito demorado, parece não chegar a lugar algum. Eu já dei cursos sobre Proust e você vai apreendendo como ideias que está expondo são ouvidas pelo outro.


Sobretudo em autores muito conhecidos, como Proust?

Muito conhecidos, mas que não são lidos.


O senhor falou que Nietzsche é o filósofo da alegria. Isso espanta muita gente, já que a imagem que se tem dele é a do niilismo, de um certo pessimismo em relação a muita coisa.

A maneira como eu o leio, com essa ideia de dar valor de eternidade a toda ação que fazemos no tempo, ele é um filósofo da alegria sim. Não posso entender que um filósofo da potência, da intensidade como Nietzsche, não seja um filósofo da alegria. Só que não é uma alegria incompatível com o sofrimento; que não vê o sofrimento como um empecilho para a vida. É como Proust. Ele foi capaz de descobrir na vida aquilo que lhe dava intensidade, que era a criação de sua obra literária. Ao lê-la, descobrimos isso até com facilidade. Ficamos todos maravilhados. Proust escreveu até os últimos momentos de sua vida e se lhe perguntassem, como fez Zaratustra, “é isso a vida?”, ele diria: “sim, quero ela outra vez”.


Qual o ganho de se ler um filósofo com o olhar de um apreciador de ficção e ler ficção com o olhar de quem gosta de filosofia?

“Não posso entender que um filósofo da potência, da intensidade como Nietzsche, não seja um filósofo da alegria. Só que não é uma alegria incompatível com o sofrimento; que não vê o sofrimento como um empecilho para a vida. É como Proust. Ele foi capaz de descobrir na vida aquilo que lhe dava intensidade, que era a criação de sua obra literária

Fonte: O Popular

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