Uma história de abandono e preconceitos

Data: 04/11/2014

Veículo: O Popular

 

 

Marco A F Velloso

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 Lançado este ano pela Editora da UFG, a obra Os “Bobos” em Goiás: Enigmas e Silêncios, da psicanalista Marilucia Melo Meireles, toca em um tema delicado para a antiga Vila Boa. Fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP), o trabalho derruba vários estereótipos que cercam as pessoas com algum tipo de deficiência ou retardo mental que viveram e ainda vivem na cidade de Goiás. A pesquisadora, que tem raízes goianas, fez um amplo levantamento em que aborda diversos aspectos em torno desse grupo de pessoas, mostrando que a teoria de que o número elevado de pessoas com essa deficiência poderia se dever a uma suposta consanguinidade entre seus progenitores não corresponde à verdade. Unindo pesquisa histórica, socioambiental, médica e fazendo numerosas entrevistas, Marilucia chega a outras conclusões e faz denúncias importantes, como o sistemático abuso sexual que essas pessoas sofreram ao longo de muitos anos, sem que qualquer punição a seus agressores fosse imposta. Em entrevista ao POPULAR, a estudiosa diz que certos tratamentos inadequados aos chamados “bobos” foram se tornando algo aceito e comum, critica Pedro Ludovico por ter usado os doentes mentais com argumento a favor da mudança da capital do Estado e observa que os indivíduos com essa deficiência passaram a integrar o imaginário local, sendo vítimas de uma mistura de escárnio e asco. 

 

 

Seu livro toca num assunto que é quase um tabu na cidade de Goiás. Como conseguiu romper essa resistência para poder fazer essa pesquisa sobre os portadores de transtornos mentais que vivem lá?

É necessário fazer uma distinção importante em relação ao conteúdo deste livro: apesar de a pesquisa ser em relação à comunidade dos “bobos” da cidade de Goiás, podemos afirmar que os dados levantados não são exclusivos desta comunidade. Esta prática aconteceu em outras regiões do Estado de Goiás e em inúmeras do Brasil. Tabu é uma palavra polinésia que quer dizer sagrado, intocável, proibido, interditado. Não foi este o tratamento respeitoso que a maioria dos “bobos” recebeu tanto das famílias quanto do Estado, reforçando a hipótese de ocuparem, na verdade, o lugar social de não-tabu, o avesso do tabu, noa, que também em polinésio, significa comum. Nossos “bobos”, justamente por serem indevidamente considerados “frutos de relações consanguíneas”, tiveram seus corpos “adulto-infantil” tocados à revelia, explorados e violentados de forma comum, pois faltaram a eles a condição de serem respeitados como pessoas. Sobre eles, apesar da severidade dos valores morais da comunidade, as proibições e interdições escorregaram e o temor que adviria da quebra do tabu não se fez presente. Não tive notícia, durante a pesquisa, de nenhum suposto violador de alguma “boba ou bobo” sofrer qualquer punição. Pelo contrário, participaram por mais de um século de uma cena surdo-muda de permissividades sexuais. Todo grupo social se contrai diante da aproximação de qualquer forasteiro. Não seria diferente comigo. Procurei inserir-me nas relações da comunidade, valendo-me inicialmente de minha origem goiana, aplacando cuidadosamente as eventuais desconfianças.

 

A senhora conta que essas pessoas sempre lhe impressionaram. Como foi o despertar dessa curiosidade?

Parafraseando a saudosa pintora Goiandira do Couto, uma de minhas entrevistadas, quando me contou que “na minha casa não tinha nenhum ‘bobo’”, posso afirmar que minha convivência com os “bobos”, durante a infância, foi episódica. Encontrava-os quando ia, junto com meus pais, visitar parentes que os mantinham dentro de suas casas realizando trabalhos domésticos. Esta cena, sem dúvida alguma, me capturou a ponto de, passados quase 50 anos, participando em São Paulo de um grupo de pesquisa sobre intolerância (neste caso, a respeito das minorias e das desigualdades étnicas), veio-me a pergunta: por que não incluir no conceito de intolerância o seu contrário, a tolerância? Já estava, de certa maneira, me indagando sobre as situações em que não podemos silenciar diante de suas contradições. As perguntas se sucederam: como, então, a comunidade goiana, tão intolerante às injustiças e ciosa dos bons costumes, foi tão tolerante, tão permissiva, com as violências praticadas contra seus “bobos”? Enquanto psicanalista, esta pergunta me exigiu a busca de respostas para dar conta deste paradoxo. Exatamente por não ter sido capturada pelos estereótipos e preconceitos e ter o privilégio da distância emocional que tal tema comporta, é que me vi convocada e em condições de refazer, como pesquisadora e não como exploradora, o percurso bandeirante: São Paulo-Goiás-São Paulo.

 

A senhora contesta no livro a causa mais habitualmente pontuada para o número elevado de pessoas com transtornos mentais na cidade de Goiás, que é a consanguinidade. Chega a ser uma surpresa?

Goiás tem lugar de destaque no cenário científico nacional. Como então foi possível continuar sustentando esta explicação de consanguinidade até os dias de hoje? Devemos ir atrás do que está sendo negado, do que está oculto, nesta afirmação: o medo e o moralismo. O inacreditável desta formulação é a ingenuidade e a coesão grupal que alcançou esta ideia, atravessando várias décadas, ou mesmo um século. Em comunidades pequenas e isoladas, dado o tamanho da população, em virtude do repertório genético reduzido, é comum surgirem patologias tanto cromossômicas quanto gênicas. Daí a ocorrência de nascimentos com malformação embrionária e o consequente surgimento de casos de deficiência física ou mental nessas comunidades, urbanas ou rurais. Estes dois fatores, consanguinidade e oscilação genética, de fato são próprios de comunidades em seus inícios de formação populacional. No entanto devemos agregar ainda outros fatores presentes, endógenos e exógenos como explicações para as malformações no nascimento de crianças nessa e depois desta época. Durante o período pré e pós-natal, tanto do lado materno quanto da própria criança, podem interferir desnutrição, doenças infecciosas (sífilis, rubéola, encefalites), hipotensão arterial, tabagismo, fatores inerentes aos traumas nas manobras de parto realizados em precárias circunstâncias, má oxigenação fetal, encefalites, intoxicações por remédios e produtos químicos, inseticidas, infestações neurocisticircoses, e outros mais. Não podemos esquecer, sobretudo, dos fatores ambientais. Nesta região grassou a exploração de minas auríferas, contaminando nossos rios pelo uso indiscriminado do mercúrio. Sabemos pelos estudos genéticos que as patologias cromossômicas, em sua maioria, acarretam problemas cardíacos, reduzindo a longevidade dos pacientes. Nossos “bobos”, ao contrário, tiveram vida longeva, indicando que, possivelmente, suas enfermidades não tiveram origem cromossômica. É temerário e cientificamente inconsistente estabelecer apressadamente esta correlação: bobos = consanguinidade. Vemos que a lógica desta explicação que concilia ideias tão contraditórias até os dias de hoje está ancorada em um sintoma social que comporta disfarces, escamoteações, negações, naturalizações, silenciamento. A redução a uma única causa, a consanguinidade, como sendo a origem dos “bobos” beira o absurdo, pois tenta conciliar dois elementos opostos: princípios morais e práticas de subjugação, principalmente a sexual.

 

Goiás é uma cidade conservadora e seus moradores têm fama de ser fechados. Isso dificultou sua pesquisa?

Continuar insistindo na oposição Goiânia versus cidade de Goiás é insistir no preconceito. Devemos entender que os habitantes das duas cidades estão repetindo, até hoje, o sintoma do então interventor de Goiás, Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Ele sim, tinha sua preferência política fundamental, a de retomar o projeto de transferência da capital do Estado de Goiás, desferindo com este gesto um golpe mortal sobre seus adversários. Queria, mais do que vencer, humilhar. Até nossos “bobos” não ficaram ausentes de seus ataques, como justificativa para a mudança. Temos evidências preciosas que comprovam minhas hipóteses (transcritas no livro), num relatório por ele enviado a Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório. Dentre outras gentilezas, ele, duramente, afirma serem os bobos uma “legião de carregadores e carregadoras, em que predominam os débeis mentais – ocupada na baldeação de água para as habitações.” Ou ainda, serem estes “baldeadores uma estranha instituição nitidamente local – o bobo, com a característica comum e verificável em muitas famílias goianas, de manter cada uma delas um bobo – mentecapto, idiota, imbecil – para o serviço de transporte doméstico, especialmente o de água”. É, no mínimo, surpreendente que sendo médico, líder da corrente progressista e modernizadora do Estado, se refira de maneira tão brutal e preconceituosa aos deficientes físicos ou mentais da cidade.

 

Seu livro foi lançado em São Paulo em um evento promovido pela Comissão da Verdade. Investiga-se como os portadores de deficiências mentais eram tratados durante regimes ditatoriais. A partir desta pesquisa, como a senhora percebe esse aspecto? Houve perseguições, abusos, falta de tratamento humanitário adequado?

Recebi a rara oportunidade de apresentar este trabalho na sessão solene da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, com o apoio do SOS Racismo de São Paulo. Na ocasião fiz uma pequena apresentação explicando para a comunidade paulistana o que queria dizer quando denominei meu livro deOs “bobos” de Goiás: enigmas e silêncios. Para termos uma ideia do descaso que revestiu o atendimento a esta parcela da população brasileira, foi somente na segunda metade do século 20 que nossos deficientes físicos ou mentais e fonoauditivos receberam da parte das autoridades brasileiras programas de atenção especializada e preocupação legal. No Estado de Goiás, somente em 11 de setembro de 1995 foram oficialmente criados, por meio da Lei n. 12.695, a Política Estadual de Atenção ao Deficiente, o Fundo Estadual de Apoio ao Deficiente e o Conselho Estadual dos Direitos do Deficiente. Creio que se há algum mérito nesta pesquisa, foi justamente a de denunciar os maus tratos e abusos sofridos por estas pessoas.

 

Há uma perspectiva histórica sobre o assunto em sua obra, mostrando que tais arquétipos sociais, como o do “bobo de Goiás”, não surgem repentinamente e sim são construídos em longos processos sociais. E que a população de Goiás tem certo “sofrimento” em recordar e encarar isso. É possível mudar essa imagem, essa conduta em relação ao tema, encarando-o com mais naturalidade?

Desenvolvi neste livro o conceito de reminiscências, justamente para estabelecer ligações entre fatos universais e acontecimentos particulares. A formação cultural da Província de Goiás não se deu no vazio. Ela herdou tanto os conteúdos trazidos pelos colonizadores europeus, quanto pelos povos indígenas e pelos negros, que também para lá foram levados como escravos. A palavra bobo, balbu em latim, significa gago. Tradicionalmente eram “funcionários” das monarquias e tinham por tarefa divertir os reis e rainhas das cortes medievais, ocupando lugares privilegiados na intimidade da realeza. Expressão do fenômeno cultural durante a Idade Média, os Bobos da Corte ou Bobos do Rei atravessaram as fronteiras geográficas, deixando suas marcas na poesia, na literatura, na pintura e no teatro universais. A figura dos “Bobos” de Goiás também carregou a herança de um imaginário cultural, com raízes universais. Guardam com os Bobos da Corte, inegavelmente, traços comuns em suas vestimentas, seus modos de entreter as pessoas, no riso e asco que simultaneamente provocam. O disfarce, a zombaria com que são tratados, servem à execração pública e até mesmo à repulsa explícita. Outro tema estreitamente correlacionado com os nossos “Bobos”, também com caráter universal, é a rejeição e recusa de filhos com o consequente abandono de crianças. Abordo esta questão por constatar que a maioria dos “Bobos” da cidade de Goiás compartilham históricos de vida nos quais o enjeitamento e o abandono foram sua marca de nascença. Tornou-se tradição na Província as famílias mais abastadas receberem estas crianças para serem “criadas” e receberem o “honroso” título de “filhos de criação”. Esta tradição remonta à época medieval, quando servos entregavam seus filhos para os mestres de oficio para serem criados e adestrados. Desta maneira, procuro em minhas páginas estabelecer uma série de correlações entre o presente e o passado, causando, sem nenhuma dúvida, perturbações e estranhamentos, quando o que ainda se quer é manter o equilíbrio frágil de suas explicações e justificativas tradicionais.

 

Livro: Os “bobos” em Goiás: Enigmas e Silêncios

Autora: Marilúcia Melo Meireles

Editora: UFG

Páginas: 368

Preço: R$ 35,00



 

Fonte: O Popular

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